A experiência tem história, mas não podemos viver
voltados para o passado. Nenhuma pessoa lúcida nega a importância da experiência
na história. Sem os fundamentos do passado não temos a competência para
construir com sabedoria o futuro. Os alicerces do amanhã estão baseados no
ontem. Precisamos do conhecimento antigo para elaborar o novo, pois as raízes da
antiguidade servem para sustentar o desenvolvimento vindouro. O retrovisor é
fundamental para o desempenho no tráfego. Muitos desastres são resultados da
falta da visão anterior. Porém, a vida não pode andar para trás.
No caso em foco, Jesus censura uma pessoa que
estava presa ao cordão emocional de sua linhagem. Ele queria seguir a Jesus, mas
tinha um vínculo com a família que precisava de acertos. Na vereda da fé cristã
há muitos que pensam deste modo. As tradições culturais e o peso da opinião
doméstica exercem grande pressão na decisão pessoal. Muitos ficam amarrados ao
julgamento do seu clã e sentem dificuldades para tomar posição. São pessoas
carentes que temem perder o apoio emocional da família e buscam conciliar sua fé
com a aprovação dos mais chegados.
Porém, esta abordagem ganha uma estimativa muito
mais ampla, quando examinamos outros lados da questão. O olhar para trás pode
representar toda tentativa de congelamento da experiência. Um grande risco que
vemos na história da igreja é o fascínio com o passado. Temos uma tendência de
perpetuar os métodos de uma época. Aquilo que foi de grande valor num momento
histórico recebe dimensões permanentes e, com isto, a igreja se inclina para
colecionar peças de museu.
Volto a insistir: não é possível caminhar com
saúde relacional, sem memória. O passado tem importância fundamental no
progresso de qualquer sistema, e há elementos no projeto da igreja que são
imutáveis. Faltando no horizonte do tempo a dimensão do passado, fica muito
difícil construir uma visão adequada do futuro. Contudo, não é normal permanecer
com aquilo que ficou obsoleto. A lamparina ainda tem a sua noite de glória nos
lugares onde não há energia elétrica, mas nenhum citadino
defende a sua permanência no mundo de hoje. Andar de charrete pode ser
pitoresco, mas é atraso no mundo automotivo.
Antes de qualquer coisa precisamos fazer uma
distinção entre aquilo que é estável e as coisas que são transitórias. Sabemos
que a Palavra de Deus é eterna e que os seus ensinamentos são duráveis. A ética
da Bíblia não muda. As leis do decálogo continuam vivas sob o comando da graça.
Ninguém pode considerar superados os princípios da moral bíblica, uma vez que
estão alicerçados na base perene do caráter de Deus. Mas os costumes e os
métodos históricos precisam ser avaliados em cada geração. Não devemos mumificar
aquilo que é provisório. A permanência das coisas interinas representa um
desperdício de tempo e um gasto tremendo de energia.
A mulher de Ló tornou-se uma estátua de sal ao
virar-se para trás. A igreja nostálgica perde sua função de sal da terra, quando
se agarra a uma metodologia retrógrada. A esterilidade de ambas se manifesta com
a contemplação do passado em desuso. Fixar os olhos naquilo que pôde ser
relevante noutra época, mas se tornou banal para este tempo, se constitui na
maior improdutividade na vivência comunitária. As pessoas orientadas de forma
dogmática para os conceitos atrasados, tentando soluções antiquadas para
problemas novos, acabam se tornando desqualificadas para o seu momento
histórico. Por isso, é importante a distinção entre os fatos eternos e as coisas
efêmeras, a fim de não descartar o que é imutável e não perpetuar aquilo que é
temporário.
O apóstolo Paulo foi um homem de vanguarda que
sabia discernir entre os eventos importantes e necessários e aqueles que serviam
momentaneamente para algum propósito. Os lances que foram admiráveis para ele
numa época, deixaram de merecer sua apreciação, quando auferiu os melhores
conceitos da graça de Deus. Irmãos, quanto a mim, não
julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para
trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo,
para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. Filipenses
3:13-14. Paulo não ficou paralisado em sua
experiência passada, uma vez que sua meta tinha proporções absolutas.
Não podemos perder de vista o alvo. A fé cristã
tem mira. A falta de um objetivo supremo desencadeia o envolvimento com as
coisas periféricas. Precisamos atirar na mosca. Quando a igreja desloca seu
olhar do centro para os detalhes, acaba se perdendo nas práticas religiosas, sem
qualquer significado eterno. A grande ameaça que assalta constantemente o
programa da igreja é a concepção de atividades irrelevantes, que simplesmente
mantém as pessoas entretidas. Tanto o passado decrépito como o presente
alucinado por novidades, carece de análise.
A igreja necessita de uma avaliação contínua do
seu programa de atividades sob os cuidados do modelo da cruz. Somente
contemplando Cristo crucificado podemos focalizar o passado de modo
acentuadamente significativo. Não é possível ser tolerante com as vulgaridades
religiosas, quando vemos o panorama espiritual sob o prisma do Calvário. Também
não é possível ver o futuro sem a perspectiva da ressurreição. A igreja de
Cristo tem uma escatologia de esperança e conseqüentemente um culto com
elementos de expressão eterna. Na igreja não há lugar para os métodos
espetaculosos
de passatempo religioso.
Os dois problemas mais sérios que temos com o
passado são: primeiramente, a lembrança ardida de uma consciência culpada. Há
uma multidão que sofre com a dificuldade em crer no perdão consumado. Como o
predador que enterra a sua presa, comumente retornamos ao nosso passado para
cavoucar a carniça escondida. A falta de uma visão clara do sacrifício de Cristo
faz muita gente prisioneira de uma memória delituosa. Parece que nunca podemos
viver isentos da culpa, e precisamos recordar em penitência a cena do crime.
Creio que a falta de revelação da obra plena de
Cristo crucificado é responsável por este retorno mórbido ao passado
delinqüente. Refém de incredulidade, o acusado inflexível regressa sempre ao seu
passado para curtir sua expiação recorrente. Ele precisa se martirizar neste
ciclo de autopunição, a fim de liberar um sentimento crônico de clemência.
Vítima de uma teologia psicológica, onde a autocomiseração é mais acentuada do
que a fé, o pobre réu do passado atura, sob pressão, uma mentalidade de
desagravo constante. Diz uma tradição, que Pôncio Pilatos viveu os seus últimos
anos exilado numa ilha, lavando as suas mãos. Nada pode ser mais terrível do que
uma consciência encarcerada num passado de amarguras, em conseqüência de
incriminações repetitivas.
Em segundo lugar, o perigo do passado fica por
conta da reedição dos modelos arcaicos e irrelevantes que são eternizados nas
tradições tolas. A falta de uma visão clara da dimensão escatológica e da
evolução progressiva da igreja faz os saudosistas torcerem o pescoço para
contemplar um passado que já expirou. Muita gente destituída da esperança da
ressurreição, ainda pretende retornar ao velho modelo judaico, que ficou
completamente ultrapassado. Vemos atualmente uma regressão acentuada no culto
cristão, com a preocupação em restaurar as formalidades festivas do judaísmo e
estabelecer uma liturgia atrelada às sombras que já foram superadas.
Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e
bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque
tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de
Cristo. Colossenses 2:16-17. Depois da realidade de
Cristo crucificado e ressurreto temos que formular a nossa teologia com base na
libertação deste passado refugado, e na certeza plena da esperança
vindoura.
A igreja cristã precisa ter uma boa memória,
recordando sempre os fundamentos essenciais de sua crença. A fé tem história,
mas não se atém construindo um memorial daquilo que foi provisório. O padrão do
evangelho é a novidade de vida numa estrutura sempre inovadora. Um legado da
reforma protestante foi que a igreja reformada devia estar sempre se reformando
à luz da esperança escatológica.
O cristianismo não tem lugar para o velhusco e bolorento sistema já deteriorado. O Senhor Jesus foi bem categórico em sua avaliação. Ninguém costura remendo de pano novo em veste velha; porque o remendo novo tira parte da veste velha, e fica maior a rotura. Ninguém põe vinho novo em odres velhos; do contrário, o vinho romperá os odres, e tanto se perde o vinho como os odres. Mas põe-se vinho novo em odres novos. Marcos 2:21-22. A mentalidade do evangelho é nova e a estrutura da igreja tem que ser sempre renovada. Repetir os velhos chavões ou cantar os cânticos da antiga comunidade judaica é olhar para trás. É bom lembrar que a fé cristã nasceu de uma sepultura aberta na madrugada do primeiro dia da semana. Ela é viva, alegre, original e cheia de esperança, olhando firmemente para o alvo, Cristo, seu autor e consumador.
Solo Deo Glória.
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O propósito deste blog na sua forma completa é capacitar seus leitores a entenderem a Bíblia. Apresenta instrução básica eficiente do ponto de vista bíblico. Procura remover todas as falsas pressuposições racionalistas, moralistas, antropocêntricas e idólatras que já infectaram,e, na medida desta infecção, cegaram todo homem e toda cultura deste mundo a partir da queda de Adão.
quarta-feira, 20 de junho de 2012
O PERIGO DO PASSADO
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