domingo, 3 de junho de 2012

O PERIGO DO PASSADO

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A experiência tem história, mas não podemos viver voltados para o passado. Nenhuma pessoa lúcida nega a importância da experiência na história. Sem os fundamentos do passado não temos a competência para construir com sabedoria o futuro. Os alicerces do amanhã estão baseados no ontem. Precisamos do conhecimento antigo para elaborar o novo, pois as raízes da antiguidade servem para sustentar o desenvolvimento vindouro. O retrovisor é fundamental para o desempenho no tráfego. Muitos desastres são resultados da falta da visão anterior. Porém, a vida não pode andar para trás.

No caso em foco, Jesus censura uma pessoa que estava presa ao cordão emocional de sua linhagem. Ele queria seguir a Jesus, mas tinha um vínculo com a família que precisava de acertos. Na vereda da fé cristã há muitos que pensam deste modo. As tradições culturais e o peso da opinião doméstica exercem grande pressão na decisão pessoal. Muitos ficam amarrados ao julgamento do seu clã e sentem dificuldades para tomar posição. São pessoas carentes que temem perder o apoio emocional da família e buscam conciliar sua fé com a aprovação dos mais chegados.
Porém, esta abordagem ganha uma estimativa muito mais ampla, quando examinamos outros lados da questão. O olhar para trás pode representar toda tentativa de congelamento da experiência. Um grande risco que vemos na história da igreja é o fascínio com o passado. Temos uma tendência de perpetuar os métodos de uma época. Aquilo que foi de grande valor num momento histórico recebe dimensões permanentes e, com isto, a igreja se inclina para colecionar peças de museu.
Volto a insistir: não é possível caminhar com saúde relacional, sem memória. O passado tem importância fundamental no progresso de qualquer sistema, e há elementos no projeto da igreja que são imutáveis. Faltando no horizonte do tempo a dimensão do passado, fica muito difícil construir uma visão adequada do futuro. Contudo, não é normal permanecer com aquilo que ficou obsoleto. A lamparina ainda tem a sua noite de glória nos lugares onde não há energia elétrica, mas nenhum citadino defende a sua permanência no mundo de hoje. Andar de charrete pode ser pitoresco, mas é atraso no mundo automotivo.
Antes de qualquer coisa precisamos fazer uma distinção entre aquilo que é estável e as coisas que são transitórias. Sabemos que a Palavra de Deus é eterna e que os seus ensinamentos são duráveis. A ética da Bíblia não muda. As leis do decálogo continuam vivas sob o comando da graça. Ninguém pode considerar superados os princípios da moral bíblica, uma vez que estão alicerçados na base perene do caráter de Deus. Mas os costumes e os métodos históricos precisam ser avaliados em cada geração. Não devemos mumificar aquilo que é provisório. A permanência das coisas interinas representa um desperdício de tempo e um gasto tremendo de energia.
A mulher de Ló tornou-se uma estátua de sal ao virar-se para trás. A igreja nostálgica perde sua função de sal da terra, quando se agarra a uma metodologia retrógrada. A esterilidade de ambas se manifesta com a contemplação do passado em desuso. Fixar os olhos naquilo que pôde ser relevante noutra época, mas se tornou banal para este tempo, se constitui na maior improdutividade na vivência comunitária. As pessoas orientadas de forma dogmática para os conceitos atrasados, tentando soluções antiquadas para problemas novos, acabam se tornando desqualificadas para o seu momento histórico. Por isso, é importante a distinção entre os fatos eternos e as coisas efêmeras, a fim de não descartar o que é imutável e não perpetuar aquilo que é temporário.
O apóstolo Paulo foi um homem de vanguarda que sabia discernir entre os eventos importantes e necessários e aqueles que serviam momentaneamente para algum propósito. Os lances que foram admiráveis para ele numa época, deixaram de merecer sua apreciação, quando auferiu os melhores conceitos da graça de Deus. Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. Filipenses 3:13-14. Paulo não ficou paralisado em sua experiência passada, uma vez que sua meta tinha proporções absolutas.
Não podemos perder de vista o alvo. A fé cristã tem mira. A falta de um objetivo supremo desencadeia o envolvimento com as coisas periféricas. Precisamos atirar na mosca. Quando a igreja desloca seu olhar do centro para os detalhes, acaba se perdendo nas práticas religiosas, sem qualquer significado eterno. A grande ameaça que assalta constantemente o programa da igreja é a concepção de atividades irrelevantes, que simplesmente mantém as pessoas entretidas. Tanto o passado decrépito como o presente alucinado por novidades, carece de análise.
A igreja necessita de uma avaliação contínua do seu programa de atividades sob os cuidados do modelo da cruz. Somente contemplando Cristo crucificado podemos focalizar o passado de modo acentuadamente significativo. Não é possível ser tolerante com as vulgaridades religiosas, quando vemos o panorama espiritual sob o prisma do Calvário. Também não é possível ver o futuro sem a perspectiva da ressurreição. A igreja de Cristo tem uma escatologia de esperança e conseqüentemente um culto com elementos de expressão eterna. Na igreja não há lugar para os métodos espetaculosos
de passatempo religioso.
Os dois problemas mais sérios que temos com o passado são: primeiramente, a lembrança ardida de uma consciência culpada. Há uma multidão que sofre com a dificuldade em crer no perdão consumado. Como o predador que enterra a sua presa, comumente retornamos ao nosso passado para cavoucar a carniça escondida. A falta de uma visão clara do sacrifício de Cristo faz muita gente prisioneira de uma memória delituosa. Parece que nunca podemos viver isentos da culpa, e precisamos recordar em penitência a cena do crime.
Creio que a falta de revelação da obra plena de Cristo crucificado é responsável por este retorno mórbido ao passado delinqüente. Refém de incredulidade, o acusado inflexível regressa sempre ao seu passado para curtir sua expiação recorrente. Ele precisa se martirizar neste ciclo de autopunição, a fim de liberar um sentimento crônico de clemência. Vítima de uma teologia psicológica, onde a autocomiseração é mais acentuada do que a fé, o pobre réu do passado atura, sob pressão, uma mentalidade de desagravo constante. Diz uma tradição, que Pôncio Pilatos viveu os seus últimos anos exilado numa ilha, lavando as suas mãos. Nada pode ser mais terrível do que uma consciência encarcerada num passado de amarguras, em conseqüência de incriminações repetitivas.
Em segundo lugar, o perigo do passado fica por conta da reedição dos modelos arcaicos e irrelevantes que são eternizados nas tradições tolas. A falta de uma visão clara da dimensão escatológica e da evolução progressiva da igreja faz os saudosistas torcerem o pescoço para contemplar um passado que já expirou. Muita gente destituída da esperança da ressurreição, ainda pretende retornar ao velho modelo judaico, que ficou completamente ultrapassado. Vemos atualmente uma regressão acentuada no culto cristão, com a preocupação em restaurar as formalidades festivas do judaísmo e estabelecer uma liturgia atrelada às sombras que já foram superadas. Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo. Colossenses 2:16-17. Depois da realidade de Cristo crucificado e ressurreto temos que formular a nossa teologia com base na libertação deste passado refugado, e na certeza plena da esperança vindoura.
A igreja cristã precisa ter uma boa memória, recordando sempre os fundamentos essenciais de sua crença. A fé tem história, mas não se atém construindo um memorial daquilo que foi provisório. O padrão do evangelho é a novidade de vida numa estrutura sempre inovadora. Um legado da reforma protestante foi que a igreja reformada devia estar sempre se reformando à luz da esperança escatológica.

O cristianismo não tem lugar para o velhusco e bolorento sistema já deteriorado. O Senhor Jesus foi bem categórico em sua avaliação. Ninguém costura remendo de pano novo em veste velha; porque o remendo novo tira parte da veste velha, e fica maior a rotura. Ninguém põe vinho novo em odres velhos; do contrário, o vinho romperá os odres, e tanto se perde o vinho como os odres. Mas põe-se vinho novo em odres novos. Marcos 2:21-22. A mentalidade do evangelho é nova e a estrutura da igreja tem que ser sempre renovada. Repetir os velhos chavões ou cantar os cânticos da antiga comunidade judaica é olhar para trás. É bom lembrar que a fé cristã nasceu de uma sepultura aberta na madrugada do primeiro dia da semana. Ela é viva, alegre, original e cheia de esperança, olhando firmemente para o alvo, Cristo, seu autor e consumador.

Solo Deo Glória

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