sexta-feira, 30 de novembro de 2012

PESCANDO OS MAIS CARENTES



Dizia mais Absalão: Ah! Quem me dera ser juiz na terra, para que viesse a mim todo homem que tivesse demanda ou questão, para que lhe fizesse justiça! Também, quando alguém se chegava para inclinar-se diante dele, ele estendia a mão, pegava-o e o beijava. Desta maneira fazia Absalão a todo o Israel que vinha ao rei para juízo e, assim, ele furtava o coração dos homens de Israel. 2 Samuel 15:4-6.
Todos nós somos carentes. Uns mais, outros menos. Estes mais carentes são mais exigentes e mais vulneráveis. Vivem sempre com um crédito inegociável. O mundo inteiro deve a eles somas impagáveis. São pessoas cheias de direitos e reivindicam toda atenção do universo para suas causas. Freqüentemente se constituem o centro dos jogos emocionais, que visam captar os holofotes para suas histórias. São escravos de cuidados especiais e manipulam os outros com os seus gemidos. Vivem na berlinda psicológica e são atores especialistas no palco dos aproveitadores emocionais.

Os mais carentes sofrem constantemente de uma dor profunda. Eles mitigam cuidados especiais. Chamam a atenção com comportamentos bizarros. Sentem-se desprezados e carecem de mel. A criancice faz parte deste comportamento pegajoso das pessoas mais exigentes. Por isso mesmo, elas estão mais sujeitas ao envolvimento dos caçadores políticos. Ninguém é mais vulnerável aos ardis do comércio afetivo do que os mais carentes. Como estão constantemente cobrando atenção, ficam visíveis no mercado da escravização psíquica e se tornam dependentes de farelos emocionais.

Absalão era um estrategista da alma humana. Ele furtava o coração do povo israelita com as teias do humanismo. Sabendo que as pessoas precisavam de cuidados, ele se apresentava como um solucionador dos negócios e, com gestos afetuosos, conquistava os sentimentos dos mais carentes. Com a habilidade dos mestres humanistas, valorizava a pessoa e, com lisonjas, supria as deficiências daqueles que sangravam em suas comiserações. Ele sabia apoderar-se das vítimas e, com a esperteza dos dominadores, aliciava os pobres coitados como correligionários. Ninguém atrai moscas com vinagre. É preciso adoçar a massa, e o pote de mel é o melhor chamariz.

Remo Cantoni
disse que as raízes da adulação se encontram na vaidade de quem sente prazer ao ser louvado. Por trás das louvaminhas há permanentemente uma forte necessidade de ser louvaminhado. Gambá cheira gambá. Os doentes emocionais se agrupam e os líderes destes magotes reforçam a conduta enfermiça com um incentivo chantagista. O jogo da mendicância por louvação reflete uma parceria de gente com um alto grau de rebaixamento. Os inferiorizados precisam de jiraus. As pulgas são os maiores acrobatas do planeta, e parece que o salto mais alto é aquele que exibe a maior necessidade de superação. Sendo o homem extremamente desprovido de suficiência, tudo aquilo que lhe agrega algum valor acaba por merecer sua atenção. O comércio nesta área é muito rico e um dos negócios mais lucrativos do mundo. Comprar as pessoas com os níqueis da afabilidade barata e torná-las aliadas às causas pessoais mais injustificáveis, gera dividendos vantajosos no mercado dos escravos apaixonados.

O apóstolo Pedro foi conciso: Movidos por avareza, farão comércio de vós, com palavras fictícias. 2Pedro 2:3a. Muitos ficam encabrestados facilmente com os confetes. As iscas do gabo artificial servem para atrair os incautos famintos por atenção. Como todos nós somos necessitados de cuidados emocionais, qualquer migalha de zelo acaba despertando o apetite pela aceitação e, acorrentando-nos nas algemas invisíveis dos elogios comerciais, nos mantêm subalternos aos interesses do egoísmo mais primitivo.

O pecado nos fez profundamente carentes. O homem só encontra verdadeiro significado e satisfação plena em Deus. Nada mais o pode preencher. Por isso, o homem sem a plenitude de Cristo fica muito susceptível à menor sinalização de reconhecimento. Cantoni insiste: muito poucos são os que permanecem insensíveis às lisonjas da aprovação e do elogio, que acariciam o amor-próprio. Somos uma raça viciada em incenso. Ficamos inebriados com as homenagens e lambemos as mãos daqueles que nos aplaudem.

Porém, é preciso muita cautela neste terreno. Não estamos negando a necessidade de incentivo. O encorajamento faz parte de uma relação saudável. Todos nós carecemos de estímulos no processo da existência. Não podemos negar a importância do elogio como impulso para o progresso. Mas, no reino de Deus, incentivar não é a mesma coisa que incensar. O incentivo se fundamenta no amor e na vontade de ver o outro crescendo para a glória de Deus, dentro da verdadeira liberdade em Cristo. A louvação é uma teia de aprisionar os mais carentes, para torná-los lacaios emocionais. O homem que lisonjeia a seu próximo arma-lhe uma rede aos passos. Provérbios 29:5. As aranhas prendem outros insetos em sua rede, para depois comê-los. Há muito afago emocional que visa domesticar os sentimentos dos inconformados, para depois usá-los nos seus objetivos políticos. A adulação é uma trama ardilosa para as conveniências. Quando temos algum interesse a preservar ou algum alvo a conquistar, freqüentemente armamos o bote com as lambidelas que mascaram a picada. Dizem que o morcego sopra antes de golpear, e depois lambe a ferida. A sensação agradável anestesia a dor da ferrada. O galanteio, com certeza, faz parte de uma boa paquera e a bajulação é a moeda diplomática para as conquistas políticas. Não é sem razão que a Bíblia publica: Ao generoso, muitos o adulam, e todos são amigos de quem dá presentes. Provérbios 19:6. Há sempre um troco proveitoso nesta aproximação lisonjeira. Mas a mentira da adulação é decifrada como verdade, porque o interesse do adulador coincide, dentro de certas proporções, com os interesses do adulado.

A enfermidade é grave. A alma mais carente vive como indigente psicológico e os aproveitadores como vampiros emocionais. Neste contexto, uma pequena sociedade de adulação mútua se desenvolve, para a manutenção da atmosfera ambígua onde um vínculo de cumplicidade perpetua a doença. Tanto o adulador como o adulado são escravos de um vício sufocante. O adulador é o servo de todos os patrões, de todas as idéias e de todas as causas. O adulado é o criado servilheta dos sentimentos mais distorcidos do caráter humano. Precisamos de cura. Ninguém pode viver com saúde emocional sendo subjugado através dos apelos da apreciação. O homem dependente de consagração precisa ser liberto urgentemente da mania de pódio. Somente os homens livres da necessidade de consideração gozam uma saúde relacional verdadeira. Como o crisol prova a prata, e o forno, o ouro, assim, o homem é provado pelos louvores que recebe. Provérbios 27:21. Quem se delicia com o elogio ou quem se magoa com a crítica precisa desesperadamente de cura. A cruz de Cristo é a clínica universal para o tratamento deste mal da alma. Não podemos tratá-lo com medicação diluída. Só a morte do pecador juntamente com Cristo pode garantir a cura deste mal tão insidioso. A terapêutica para o mal de louvação tem que ser radical. Só a morte da raiz da doença pode garantir salvação. Jesus mostra a profundidade do tratamento com estas palavras: Assim também vós, depois de haverdes feito tudo quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer. Lucas 17:10. Aqui não há lugar para troféus nem homenagens. Ninguém precisa de aplausos nem prestígio na platéia dos santos. Todos aqueles que já foram tratados com a terapêutica do Calvário, sabem muito bem que o único louvor fica voltado para a tribuna principal onde está assentado o Rei dos reis.

A cura do mal de louvação e da coceira por louvaminhas é imprescindível para o progresso da saúde nas relações do povo de Deus. Sabemos perfeitamente que uma pessoa está liberta espiritualmente quando não fica mais fisgada pelas emoções excitantes dos aplausos nem amofinada com as apelações da crítica. Os salvos sabem que: Leais são as feridas feitas pelo que ama, porém os beijos de quem odeia são enganosos. Provérbios 27:6. Os santos sarados pela graça de Cristo não se embriagam com as orgias emocionais das ovações nem se deprimem com o veneno acre da censura ríspida. Quando alguém se acha aceito pela graça de Cristo não precisa mais da mera aceitação humana, pois não teme qualquer tipo de rejeição. Aqueles que tiveram a aprovação em Cristo não podem ser pescados com simples louvação. Louvado seja o Senhor que nos salva e nos sara deste mal tão embriagante e tão mesquinho. Amém.
 
Soli Deo Glória.

A VISÃO DÁ O RUMO

Olhai para mim e sede salvos, vós, todos os limites da terra; porque eu sou Deus, e não há outro. Isaías 45:22.
O viajante segue sempre em seu destino e ninguém vai além do alvo que o atrai. A direção da trilha é assinalada pelo objetivo para onde se quer ir, por isso, quem tem uma visão clara do seu propósito nunca se perde no meio do caminho. Quem não sabe para aonde vai não tem rumo para aonde ir. A falta de visão deixa o viageiro sem saber qual é a sua senda. E quem não sabe para onde vai já chegou. A falta de uma visão intensa do intento que se quer, ainda gera conflito. Quando a imagem não está clara corre-se o risco da confusão na mira. Antes de qualquer passo na peregrinação da fé cristã precisamos certificar o que queremos de fato, focalizando o objeto certo, pois astigmatismo provoca duplicidade na visão, acarretando um desastre.
O cristianismo é uma viagem com uma visão viva de Cristo. O alvo da experiência da vida cristã é Cristo. Ninguém pode começar uma excursão espiritual sem a revelação da pessoa sublime de nosso Senhor Jesus Cristo, e essa turnê será sempre olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus. Hebreus 12:2.
A visão definida de Cristo é a causa do progresso espiritual. Enquanto o nosso olhar vesgo estiver desconectado desta única realidade salvadora, estaremos em perigo permanente. A duplicidade da visão suscita ambigüidade da fé, que produz esquizofrenia religiosa. A falta de integridade espiritual e da legítima inteireza moral é resultado da deficiência da visão de Cristo.
Vamos tomar um exemplo notável do Antigo Testamento. Moisés era um homem capaz e bem formado na corte de Faraó. Ele tinha sido educado na ciência do Egito e possuía um cabedal de conhecimento capaz de governar qualquer nação em sua época. Mas Moisés não conhecia Jeová. Ele era um administrador e jurista competente. Sabia muito da política palaciana e era um humanista extraordinário, todavia não tinha a visão do Deus de Israel. Ele não conhecia nada do Messias. Não sabia quem era Cristo.
Ser administrador e humanista não significa ser pastor no rebanho do Senhor. Moises foi preparado pela escola política do Egito e educado para governar as massas, contudo faltava-lhe a visão da realidade espiritual. Uma coisa é o fenômeno social de uma nação, outra bem diferente é o povo de Deus, a Assembléia dos redimidos. A visão de Moisés encontrava-se fora do foco. Ele sabia muito, mas não sabia o essencial para transportar o povo Deus do cativeiro para a liberdade. Ser competente no Egito não é a mesma coisa que ser conveniente no deserto para poder ser pastor das ovelhas nos apriscos de Canaã. Conduzir o povo de Deus é diferente de dirigir uma agremiação de classe. A Assembléia dos eleitos não é um partido político que se conquista com barganhas e astúcias estratégicas. Deus não usa promoter no seu fluxograma. O homem do Palácio carecia de treinamento no deserto. Moisés era forte demais para ser um canal da graça. Deus sempre quebranta os vasos do seu ministério. Antes da liderança eficaz é preciso a humilhação da carne. A equipe de Deus é formada por gente sovada no lagar da cruz. Sem a revelação interior de Cristo crucificado os mensageiros do evangelho estarão desclassificados para a missão de conduzir o seu povo.
A visão de Moisés era estrábica e ele estava mais preocupado com a opinião dos outros do que em ver a realidade espiritual. A ênfase de sua análise era essencialmente humanista, pois só via as coisas aparentes relacionadas ao ser humano. Naqueles dias, sendo Moisés já homem, saiu a seus irmãos e viu os seus labores penosos; e viu que certo egípcio espancava um hebreu, um do seu povo. Êxodo 2:11.
Ele viu a aflição do povo e o espancamento de um hebreu e se viu como um Sassá Mutema ou salvador da pátria preparado para entrar em cena. A visão messiânica de Moisés era uma demonstração da onipotência pecaminosa. A teomania é a marca evidente de uma pessoa que nunca passou pelo vale de Baca. Bem-aventurado o homem cuja força está em ti, em cujo coração se encontram os caminhos aplanados, o qual, passando pelo vale árido, faz dele um manancial; de bênçãos o cobre a primeira chuva. Salmos 84:5-6.
Vale árido ou vale de Baca vem de uma raiz verbal que significa chorar. Os filhos de Coré ou os filhos do Calvário são marcados pelas lágrimas neste mundo, mas pela poder da graça manifesta na fraqueza costumam transformar os seus problemas em bênçãos. Moisés ainda não havia passado por esse vale, portando agiu na força da carne.
A carne só consegue ver a carne. Olhou de um e de outro lado, e, vendo que não havia ali ninguém, matou o egípcio, e o escondeu na areia. Êxodo 2:12. O olhar de Moisés foi calculado. Ele tinha dois objetivos em vista quando olhou de ambos os lados. Moisés lutava com o desejo da aprovação do seu povo e com o medo da rejeição dos egípcios. Ele queria ser o libertador do povo hebreu e não queria perder o prestígio do Egito. A carne deseja a salvação de Deus, mas não quer perder as honras do mundo. Moisés era um homem carnal que precisava da operação da cruz.
A visão zarolha nunca alcança o prumo espiritual. O príncipe do Nilo estava obstinado em suas idéias messiânicas. Saiu no dia seguinte, e eis que dois hebreus estavam brigando; e disse ao culpado: Por que espancas o teu próximo? Êxodo 2:13. Ele já tinha a toga do juiz e sabia quem era o culpado. A presunção é catastrófica.
Quem se vê como solução nunca se percebe como problema. Moisés era homem demais para enxergar a sua arrogância. O pecado faz do ser humano a solução dos seus enigmas e o torna cheio de si mesmo para ser reconhecido pelos outros. Ora, Moisés cuidava que seus irmãos entenderiam que Deus os queria salvar por intermédio dele; eles, porém, não compreenderam. Atos 7:25.
Quando Moisés percebeu que o seu crime havia sido descoberto, uma vez que um dos briguentos o acusa de assassino, toma a iniciativa de fugir para o deserto, a fim de se esconder da ira de Faraó. Essa escapada foi o inicio de um tratamento profundo na escola do deserto. No Reino de Deus o esvaziamento precede o enchimento. Um homem prestigiado no mundo não pode ser usado com simplicidade no serviço de Deus. Um dos maiores perigos para os filhos de Deus são os holofotes da opinião pública. C H Mackintosh disse que Moisés havia recebido os seus títulos nas escolas dos homens, mas tinha ainda de aprender o alfabeto na escola de Deus, porque a sabedoria e ciência humanas, por muito valor que tenham em si mesmas, não podem fazer de ninguém um servo de Deus, nem qualificar alguém para desempenhar qualquer cargo no serviço divino. O homem estimado pelo Egito não tem valor para o povo no deserto.
Moisés tinha que ser desclassificado primeiro. A obra da cruz visa desconsertar os acordos do Egito ou padrões do mundo e desconstruir o homem que se auto-estima. O nobre precisava ser convertido em plebeu e o príncipe deveria virar pastor de ovelha. No Reino de Deus não há lugar para vedetismo ou exibição de capacidade.
Observem que uma das coisas mais abjetas para um egípcio é pastorear ovelhas. Vejam o conceito que essa classe gozava entre este povo, no argumento que os irmãos de José dariam a Faraó. Respondereis: Teus servos foram homens de gado desde a mocidade até agora, tanto nós como nossos pais; para que habiteis na terra de Gósen, porque todo pastor de rebanho é abominação para os egípcios. Gênesis 46:34.
Converter um homem admirado no palácio do rei, num sujeito abominado pelo Egito é algo terrível para essa pessoa. Mas é aqui que começa a escola de Deus. Aquilo que o mundo considera de valor supremo, Deus desconsidera integralmente. Para Moises só restava o desmonte de sua cultura, pastoreando no deserto.
No livro de Humberto X. Rodrigues, Jesus o Eu Sou, há um pensamento muito apropriado para essa abordagem. Ele disse que Moisés passou 40 anos no Egito aprendendo tudo para ser alguma coisa, depois mais 40 anos na terra de Midiã esquecendo-se do que aprendeu no Egito e, por fim, 40 anos no deserto descobrindo que Deus é tudo. Para saber que Deus é tudo, Moisés teve que desaprender que ele era alguma coisa. Ninguém pode depender da plenitude de Deus antes de chegar ao fim de si mesmo.
O homem presunçoso precisava de total esvaziamento. A visão bilateral e carnal daquele salvador da pátria carecia de uma revelação espiritual para que ele pudesse ver a sua real incompetência. A sarça ardente foi o enfoque que descortinou o horizonte de uma nova perspectiva na vida deste homem esculpido sob o sol causticante do ermo. O Moisés da planta que não carbonizava é um homem que não ardia mais pelo comando.
Moisés teve uma visão que causou uma revisão em todos os seus conceitos humanos. A visão era de um fogo que não tem combustível. Então, disse consigo mesmo: Irei para lá e verei essa grande maravilha; por que a sarça não se queima? Êxodo 3:3. A energia daquele fogo não dependia da madeira do arbusto, assim como o poder de Deus não depende da capacidade humana.
Quando o Senhor viu que Moisés estava vendo uma realidade além da visão física lhe propôs uma atitude de vigilância, bem como a retirada do último apetrecho de sua cultura natural. Deus continuou: Não te chegues para cá; tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa. Êxodo 3:5.
Para o pródigo fracassado que chegava como escravo na casa do pai são-lhe dadas sandálias novas para a sua recepção como príncipe na família real. Para o príncipe egípcio que está sendo transformado em servo de Jeová são-lhe removidas as sandálias de uma cultura esnobe. Moisés precisava ganhar a singeleza da santidade. Depois da visão de Deus no meio da sarça ardente Moisés tomou outro rumo na vida. Ao perceber que o Eu Sou não dependia do que ele era, então se enxergou como de fato é. Quando Eu Sou diz: Vem, agora, e eu te enviarei a Faraó, Moisés objeta: Quem sou eu para ir a Faraó e tirar do Egito os filhos de Israel? Êxodo 3:11.
A visão do Eu Sou desconserta a visão de quem sou eu. É preciso primeiro Jesus nos desmanchar na cruz, para, em seguida, nós ganharmos uma nova identidade na ressurreição. A substituição da vida é também uma mudança na visão. Ele sai do terreno onde é adorado no Egito, para o estado em que é adorador no deserto. Deus lhe respondeu: Eu serei contigo; e este será o sinal de que eu te enviei: depois de haveres tirado o povo do Egito, servireis a Deus neste monte. Êxodo 3:12.
Tudo o que Deus procura é adorador que o adore no espírito e em verdade. Jesus foi muito claro com respeito a este propósito, quando disse – Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. João 4:23.
A visão pela fé da pessoa de Cristo é a única opção para a verdadeira evolução na vida espiritual. A teomania faz o culto gravitar em torno do homem, seu entretenimento e suas preferências pessoais, enquanto a revelação de Cristo crucificados faz o homem cultuar apenas e tão somente a Trindade Santa. A igreja só tem um tema e um alvo – olhar para Cristo em profunda contemplação e adoração. A visão de Cristo Jesus crucificado, mas ressuscitado é o rumo certo na história do povo de Deus, por isso, como Moisés, olhemos apenas para Jesus Cristo, nosso Senhor. Pela fé, ele abandonou o Egito, não ficando amedrontado com a cólera do rei; antes, permaneceu firme como quem vê aquele que é invisível. Hebreus 11:27.
 
Soli Deo Glória.

DOENÇAS FAMILIARES

Então se chegou a ele a mulher de Zebedeu com seus filhos, e adorando-o, pediu-lhe um favor. Perguntou-lhe ele: que queres? Ela respondeu: Manda que, no teu reino, estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita, e o outro à tua esquerda. Então se aproximaram dele Tiago e João, filhos de Zebedeu, dizendo-lhe: Mestre, queremos que nos concedas o que te vamos pedir. E ele lhes perguntou: Que quereis que eu vos faça? Responderam-lhe: Permite-nos que na tua glória nos assentemos um à tua direita e o outro à tua esquerda. Mateus 20:20-21 e Marcos 10:35-37.
Parece que há uma certa discrepância aqui nas narrativas dos dois evangelistas, pois Mateus sugere que foi a mãe dos discípulos quem fez o pedido, porém Marcos mostra os próprios discípulos apelando a Jesus. Entretanto, não me parece que haja propriamente uma contradição, desde que Mateus se refere à mãe juntamente com os seus filhos, entrando com o pedido. É possível que a mãe tenha falado em primeiro lugar e que os filhos logo em seguida tenham tido a ousadia de expressar os seus sentimentos.

Neste episódio há outros elementos igualmente intrincados nas entrelinhas que devemos considerar com mais atenção. Creio que os dois relatos vêm revelar algo muito além de uma possível contradição textual, uma vez que estamos diante de uma relação familiar um tanto complexa. Aqui vemos a mãe se antecipando na tentativa de resguardar uma posição de destaque para os seus filhos, já que está em jogo neste apelo a proeminência dos seus rebentos no cenário do reino de Cristo.

A solicitação daquela senhora evidencia uma necessidade de realce sobre as outras pessoas, o que de certo modo, confirma uma característica de inferioridade. Talvez possamos observar nesta aspiração algo semelhante a um rebaixamento emocional, porque a família mostra sintomas de aviltamento. A preocupação com o relevo dos rapazes assentados na plataforma principal demonstra uma deficiência no conceito da personalidade. Muita gente inferiorizada precisa de assessórios especiais para compor sua imagem no palco das apresentações carentes.

O pecado deformou a dignidade do ser humano e vemos os nossos primeiros pais usando os seus aventais como ornatos para tentar cobrir a nudez e compensar sua imagem perante a face de Deus e a opinião do outro. Daí em diante a raça de Adão foi invadida por todos estes mecanismos de regulagem que servem, de alguma forma, para indenizar os prejuízos causados com a falta de valor pessoal. Assim sendo, muitos expedientes não essenciais têm sido agregados à pessoa, a fim de lhe garantir aceitação no meio social. Observe, por exemplo, como a grife dos estilistas ganha peso na apreciação dos mais carentes.

Somos uma sociedade de carentes emocionais e quanto mais desprovidos dos valores essenciais da pessoa humana, mais necessitados nos sentimos dos recursos anexos para garantir nossa aceitação no contexto da coletividade. Todas as pessoas portadoras de um sentimento subalterno vão sempre se considerar em desvantagem com relação às outras, e vão tentar, de alguma forma, buscar um certo qualificativo que possa acrescentar um sentido de importância à sua identidade.

Os dois discípulos de Jesus dão a entender que sofrem de um mal profundo de mendicância psicológica e que esta insuficiência era um problema familiar. O protecionismo pegajoso da mãe estampa uma grande falta de equilíbrio na educação dos seus filhos e uma ausência maior de limite, impondo seu anseio dominante aos marmanjos imaturos. Os pais enfermos adoecem sua prole. Um lar carente de aceitação propõe todo o tipo de ascendência social, para que os filhos sejam reconhecidos. Nada pode ser mais trágico no processo educativo do que oferecer alternativas de significado, baseadas nos atributos adicionais de importância familiar, poder, riqueza, posição e títulos.

A proposta da mulher de Zebedeu é uma clara manifestação de falta de princípios éticos e uma característica marcante de uma pessoa dominadora que sufoca os filhos com suas ambições de grandeza. O medo da rejeição insuflado pelos anseios de reconhecimento faz uma pessoa se tornar ridícula, buscando aceitação a qualquer custo, por isso que o estilo manipulador de uma personalidade autoritária sempre converte um favor em mandamento. Os traços típicos da doença arrogante se evidenciam no papel político da manipulação que bajula aquele que se encontra no alvo dos seus interesses, a fim de levar vantagem.

A dona fulano-dos-anzóis-carapuça era uma enferma psicológica que assediava a vítima do seu bote, no caso Jesus, com veneração. Adorando-o pediu-lhe um favor... Manda que, no teu reino, estes meus dois filhos se assentem... A estratégia do insano emocional é conquistar os seus objetivos proveitosos usaando as pessoas com elogios e louvação, como se fossem meras agências de corretagem. Conhecendo a fragilidade humana e a profunda carência de atenção que todos nós temos, o aproveitador lambe as feridas dos despojados com cuidados especiais e lisonjas, para em seguida apossar-se do seu intuito. Assim, a mulher queria fazer de Jesus um mero trampolim para alcançar seus propósitos.

A doença familiar é contagiosa. A mãe dominante e ambiciosa acabou propagando o apetite da grandeza nos seus filhotes, uma vez que Tiago e João estão agora cobiçando as cadeiras do trono. Sendo portadores de uma natureza soberba em conseqüência do pecado, e criados num ambiente pressionado pela grandeza, eles foram invadidos de um sentimento de importância que só se importa com as coisas elevadas e os lugares realçados. Noa seio de uma família oprimida pela patologia da miséria, freqüentemente um complexo de superioridade assume o comando que impulsiona toda energia para o tope do poder.

A atmosfera envolvente da família ambiciosa gera uma paixão contida pela glória inebriante e, ao mesmo tempo, um anseio irreprimível pela exaltação do homem. Trava-se, então, a luta entre os conceitos morais da humildade social e os desejos incontroláveis do coração intrigado com sua grandeza, econhecimento e domínio. Num contexto complexo de sentimentos abafados, em que entram o desejo, o medo e a fantasia, o paciente febril se perde num jogo de conveniências e interesses, procurando um lugar onde possa exibir seus talentos aperfeiçoados, a fim de ser aceito.

Jesus põe o dedo na ferida quando trata com os dois discípulos cegos de ambição, propondo um antibiótico de última geração.Para esta vida contaminada pelos vírus nobilíssimo e nobilitante só há um remédio a ser prescrito, o xarope amargo do Calvário. Mas Jesus lhes disse: Não sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu bebo ou receber o batismo com que eu sou batizado? Marcos 10:38. Os discípulos responderam que podiam, e o Senhor mostrou claramente, que só o cálice amargoso da cruz com o seu batismo na morte era capaz de curar o mal universal da teomania e a insidiosa doença familiar da glorificação pessoal.

A raça humana padece de uma hipertrofia exagerada na personalidade e cada pessoa sofre de um mal que só pode ser diagnosticada como a macromegalia-ególatra exibida, com a presunção de "top of mind". A única terapia eficiente e eficaz para esta moléstia tão grave é a morte do esnobe exibicionista na mesma cruz com Cristo. Não há outro medicamento na face da terra capaz de curar a doença da alma, mais difícil de diagnosticar, pois muitas vezes seus sintomas estão dissimulados com a máscara da espiritualidade mística ou disfarçados em humildade farisaica.

Não podemos brincar com a nossa saúde espiritual, já que Deus providenciou uma saída adequada para solucionar este problema. Tiago e João foram curados deste mal comum, com o genérico da farmácia divina, na crucificação com Cristo, e nós, também temos garantido o nosso tratamento permanente no mesmo hospital da graça, onde os dois discípulos enfermos forma clinicados. Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus. Romanos 6:11.

Nenhum cristão autêntico pode almejar ser ilustre no mundo em que o Senhor do universo viveu como um pobre desconhecido. Na terra em que Jesus estabelece o seu reino com uma bacia nas mãos, lavando os pés de pescadores, eu não posso pensar numa coroa enfeitando a minha cabeça. Toda necessidade de ser importante ou reconhecido perante o mundo reflete uma distorção profunda no caráter daquele que se diz ser filho de Deus. Mas os discípulos de Jesus entalhados no Calvário jamais trocarão a glória da cruz pelo brilho fosco de uma mídia alucinada pela notabilidade, nem pelos aplausos tolos das platéias ávidas por ídolos. Aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou. 1 João 2:6. Neste planeta onde Deus foi, por mais de três décadas, um habitante humilde sem qualquer sinal de importância, eu não devo me envolver com as migalhas medíocres de uma estimação que nada vale perante os critérios dos céus. Gosto de ler um pensamento de Andrew Murray neste contexto, que bem define o caráter de um cristão autêntico: Como a água se infiltra nos lugares mais baixos, assim Deus lhe sacia de sua glória e poder quando o encontra humilhado. Uma pessoa que busca sua importância naquilo que é insignificante para Deus, acaba perdendo todo o significado de sua existência, para Deus, neste mundo, mas aquele que traz as marcas de Cristo pode viver com o mesmo sentimento de Cristo. Tende em vós o mesmo sentimento que houve também com Cristo Jesus... a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz. Filipenses 2:5 e 8.
 
Soli Deo Glória.

ODRES NOVOS NO CURSO DA HISTÓRIA

Pelo contrário, vinho novo deve ser posto em odres novos [e ambos se conservam]. Lucas 5:38.
Jesus explicou, claramente aqui, diante das criticas que foi alvo em razão da ausência de jejum na experiência dos seus discípulos, que os odres velhos não têm qualquer serventia para a preservação do vinho jovem. Esses odres gastos não serviam para essa alegria estonteante que precisa se atualizar dia a dia. O sistema judaico estaria falido?
A nova comunidade em gestação, na Galiléia dos gentios, tinha uma fermentação intensa e vigorosa de júbilo, enquanto os vasos judaicos já estavam velhos, murchos, encolhidos e rotos. Estavam imprestáveis para abrigar o mosto efervescente desse lagar inédito.
O judaísmo havia se tornado esclerosado, duro, seco e sem qualquer mobilidade para a nova realidade inaugurada pela encarnação do Verbo Divino. Javé em pele, osso, carne e sangue é um assombro para essa mentalidade governada pelas franjas do talit, ou pelos rituais das sinagogas advindas da Babilônia infestada de paganismo. O Deus encarnado no Jesus histórico é uma profanação violenta de algo sagrado e distante.
O vinho, aqui, no texto, está no singular e os odres no plural. Nesse contexto o vinho novo é único. Não existem vinhos novos. Só há um vinho novo, já que o Evangelho da graça é excepcional e exclusivo. Fiquem sabendo, de antemão: a Graça não se encontra em qualquer sistema de religião na face da terra; mesmo que seja uma graça genérica ou, algo semelhante ao favor imerecido de Deus. Apenas no Evangelho de Cristo Jesus há Graça e Graça plena e incondicional.
A religião pós-exílica era um odre curtido na fumaça e cheio de fuligem. Os lideres haviam transformado as 613 letras hebraicas do Decálogo, os dez mandamentos, em 613 mandamentos retirados do Pentateuco, isto é, dos cinco primeiros livros do Antigo Pacto.
Eles converteram o relacionamento saudável com Deus num código congestionado de regras complicadas e tomadas de detalhes. Para essa turma de solidéu ou kipá, e de véu na cuca, o que vale é a conduta externa promovida por normas ao pé da letra.
Segundo Eric Geiger, dos 613 mitzvot da Torá, "havia 248 mandamentos afirmativos, um para cada parte do corpo humano, como eles assim entendiam e, 365 mandamentos negativos, um para cada dia do ano. Depois, eles dividiram a lista em mandamentos compulsórios e não compulsórios. Então, passavam os seus dias discutindo se aquela divisão e a classificação dos mandamentos dentro de cada divisão era “adequada".
Foi com este pano de fundo tricotado com nós cegos e com o casuísmo legalista das minúcias em miçangas, que Jesus descomplicou radicalmente o formato enredado daquele odre que vinha embutido na pergunta: qual é o maior mandamento? A tropa de elite do Sinédrio queria colocar Jesus numa sinuca de bico e mostrar a fraqueza das boas novas que brotavam viçosas na proclamação de uma alforria permanente.
Mas, para Jesus a nova comunidade teria apenas dois pilares de apoio. Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas. Mateus 22:37-40.
O Senhor da graça, reduzindo 611 mandamentos da lei, sem restringir uma vírgula sequer do seu valor ético; e, ao simplificar as linhas e alíneas do regulamento, tornou regular a única base que sustenta os relacionamentos sadios: o amor.
O Evangelho é simples. Além disso, é positivo. É a boa notícia de que fomos aceitos integral e incondicionalmente no amor do Amado. Não existem cláusulas. Por exemplo: eu te amo uma vez que... ou, eu te amo quando... contanto que... se... Nada disso. Deus nos ama independentemente de qualquer condição. Como disse Dr. David Seamands, "nós podemos rejeitar o amor de Deus, mas não podemos impedir que Ele nos ame".
O vinho novo é sempre o mesmo e sempre novo. Não há boas novas velhas. O gosto do Evangelho nunca muda. É surpreendente a sua novidade histórica, pois, após dois mil anos, o seu aroma e o seu sabor são como o do beaujolais nouveau da safra atual.
O amor não envelhece. A graça não caduca. A boa notícia de que Cristo me aceitou de modo incondicional na cruz se atualiza a cada dia, assim como a minha morte e ressurreição com ele nunca perdem validade. O Evangelho é original e único.
Contudo, há um grande perigo quando se trata de misturas em termos de vida espiritual. Nesse instante se pode dizer: "hoc opus, hic labor est". Tradução bem vulgar - "é aqui onde a porca torce o rabo". Que tragédia: tentar misturar o Evangelho com o humanismo!
Para os enólogos, os blends, ou misturas de uvas, podem ser uma boa opção. No mercado encontrarmos grandes vinhos decorrentes desta junção de castas diferentes. Mas, nunca, mistura-se a graça de Deus com o mérito humano. É preciso avaliar com cuidado as motivações e objetivos da bondade que está por trás de cada ato humano.
Só Deus é o Bem Supremo e Bom por essência. Mas, a humanidade tem uma bondade relativa que se propõe ser comparada com a Bondade Divina. É o altruísmo subordinado ao interesse.
Como podemos discernir a diferença entre a bondade Divina e a humana, uma vez que, há atos bondosos nos dois modelos? Talvez essa pista de Jesus nos ajude um pouco: Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem? Mateus 7:11.
A bondade humanista encontra-se vinculada aos interesses da preservação de sua própria espécie, enquanto a distinta Bondade Divina se volta para qualquer um que a quiser. Deus é sempre favorável a todos que o pedirem. Além disso, a nossa bondade constantemente requer um reconhecimento pessoal e exige sua glória nas entrelinhas; porém, a benevolência Divina nunca cobra reciprocidade. Por favor, analise isto com muito cuidado: agradecimento não é penhor. A gratidão jamais pode ser obrigatória.
Nós temos, também, que examinar os frutos com muita acuidade, pois é pelos frutos que se conhecem as árvores. Todavia, não podemos julgar apenas pelas aparências, assim corremos riscos de injustiça. "Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que balança, cai".
Você sabe a diferença entre um talento e um dom? Então, o dom é uma dádiva Divina. Não vem naturalmente com o ser humano, uma vez que não viemos ao mundo com ele. É um carisma do próprio Deus. É uma capacidade Divina dada aos Seus filhos. O talento, entretanto, é uma competência que Deus criou no ser humano. Nós já nascemos com a tal habilidade, que deve ser desenvolvida e que, habitualmente, exige aplauso da plateia.
O dom nunca sobe em palco. O talento não pode viver sem alguma plataforma. Por isso, os odres construídos a talentos costumam exibir suas qualidades, enquanto esses talentosos exigem a glória pelos seus feitos. É aqui que precisamos de uma avaliação mais criteriosa. O talento quando não recebe a honra, magoa-se. O dom, todavia, faz a festa no ostracismo. Para quem foi só usado por Deus, o contentamento é tudo.
Vejamos um pouco mais essa questão. Um dos grandes enganos que cometemos na avaliação da história da Igreja, é quando confundimos o continente com o conteúdo. Quantas vezes nós damos mais valor aos odres do que ao vinho, principalmente quando os odres são costurados com as tiras tiradas do humanismo talentoso?
Mas, substituir os dons de Deus pelos talentos humanos no seio da Igreja é um prejuízo atroz que deixa atrás sequelas devastadoras. Todo tipo de disputa de poder ou ciúmes por cargos e posições são criados e fomentados pelos hormônios da carne transpirando habilidades sob os auspícios da louvação. A carne talentosa dispensa os dons de Deus.
É no contexto da vaidade humana e da troca de favores que os odres acabam por serem pervertidos, corrompidos; envelhecendo-se. Nesse caso, o velho odre deve ser trocado ou substituído por um atual, para que o vinho novo não se perca. Ninguém põe vinho novo em odres velhos; do contrário, o vinho romperá os odres; e tanto se perde o vinho como os odres. Mas põe-se vinho novo em odres novos. Marcos 2:22.
O Evangelho, contudo, é como pão saído do forno na hora; encontra-se quentinho. É a boa nova espiritual sempre recente. Como já vimos, não há Evangelho antigo, obsoleto, superado. O vinho novo continua permanentemente jovem. O que envelhece com o tempo, é o odre, que carece de renovação constante. As estruturas da Igreja ficam velhas e precisam ser substituídas pela revitalização do nosso entendimento.
Uma das características da novidade do Evangelho da graça plena é a incessante contemporanização de sua arquitetura. De acordo com Martinho Lutero, o reformador do século XVI: "ecclesia reformat semper reformanda secundum verbum Dei", ou seja, "igreja reformada sempre sendo reformada segundo a palavra de Deus", ou ainda bem mais adequado: Eis que faço novas todas as coisas. Apocalipse 21:5.
De um modo geral, o ser humano costuma complicar as suas estruturas. Como podemos nós simplificar aquilo que temos complicado através da história? Parece que precisamos rever a nossa eclesiologia. Quero finalizar hoje este questionamento, com um texto bem descomplicado: Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos. Atos 2:46-47.
Abba, querido, abre os nossos olhos para que vejamos a singeleza do teu Evangelho, e assim, vivamos na simplicidade do teu amor incondicional. No nome de Jesus. Amém.
 
Soli Deo Glória.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

E ERA NOITE

E, após o bocado, entrou nele Satanás. Disse, pois, Jesus: O que fazes, faze-o depressa... E, tendo Judas tomado o bocado, saiu logo. E era já noite. João 13:27-30.
Após o bocado de pão molhado, Satanás entra nele, toma posse de Judas para endurecê-lo contra tudo o que pudesse fazer-lhe sentir, mesmo como homem natural, o horror da sua ação, enfraquecendo-o e preparando-o para a realização do mal, a fim de que nem a sua consciência nem o seu coração despertassem ao fazê-lo.
Mas, o que sabia Judas dos propósitos de Deus? Não sabemos, mas por certo, a sua alma estava mergulhada em densas trevas espirituais porque ele rejeitou a Luz. Por isso, o Espírito Santo não deixou de registrar a verdadeira condição do coração de Judas nestas palavras: E era noite. ‘Noite’ na Bíblia sempre fala da ausência do Senhor.
Esta é a história espiritual de todos os homens, todos nascem mergulhados em densas trevas, longe da presença de Deus. Os contornos da pintura podem variar. A coloração pode às vezes estar mais escura ou, às vezes, com matiz mais leve. Mas, os princípios da composição são os mesmos em toda parte.
Para onde quer que voltemos nossos olhos, descobrimos provas deprimentes de nossa depravação. Quer olhemos para os tempos antigos quer para os modernos, para as nações bárbaras ou civilizadas, ou mesmo para aquilo que lemos, ouvimos, executamos, pensamos ou sentimos, a mesma lição humilhante se impõe sobre cada um de nós - Somos por natureza depravados.
As circunstancias podem variar de indivíduo para indivíduo. Não importa se ele nasceu no berço de ouro ou numa choupana, se é pobre ou rico, se confessa um credo ou não, se foi educado nas melhores escolas ou nunca passou por elas, se é culto ou inculto, o veredicto divino está posto: Como está escrito: Não há um justo, nem um sequer. Não há ninguém que entenda; Não há ninguém que busque a Deus. todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só. Romanos 3:10-12.
Aprendemos a partir desta revelação de Deus, que o homem é um ser apóstata. Ele caiu de seu original estado de perfeição. Ele é degradado em sua natureza e depravado em suas faculdades. Ele não tem disposição para o bem, mas sim, para o mal.
O homem está, no cerne do seu ser, na sua essência, radicalmente corrompido pelo pecado. É de fundamental importância compreender, que o homem no seu estado natural não busca a Deus, posto que: Não há ninguém que busque a Deus.
Não há nada que seja tão antibíblico do que dizer que o homem natural busca a Deus, e que o seu problema é que ninguém lhe anunciou a Boa Nova. Por natureza o homem odeia a Deus; está em inimizade com Deus e morto em seus delitos e pecados: Entre os quais todos nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os outros também. Efésios 2:3.
O Espírito Santo não fala aqui que o homem está condenado diante de Deus por ter cometido pecados, nem por ter falhado no seu relacionamento com Deus ou por ter caído na idolatria. O Espírito Santo aqui, nada fala sobre o que homem tinha feito. O problema do homem é um só: Ele é por natureza, filho da ira.
Que nenhum de nós perca de vista o fato de que, o problema do homem não é que ele faz, mas sim, o que ele é. Este é o efeito devastador da queda: todas as pessoas que nasceram neste mundo, desde a queda de Adão, são portadoras de uma natureza rebelde e filhos da ira.
O homem nestas condições é semelhante ao sal que perdeu o gosto. Como torná-lo salgado novamente? A princípio era útil, mas perdeu o sabor e se tornou inaproveitável, seu fim é o lixo. É, portanto, de fundamental importância se obter um bom diagnóstico para uma boa terapêutica.
Se a nossa condição é assim tão degradante, o que deve ser feito? Há alguma esperança? Àquele que tem conhecimento de seu verdadeiro estado de perdição e desamparo, só lhe resta um pedido de misericórdia, à semelhança do publicano: O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador! Lucas 18:13.
É aqui que a nossa fundação deve ser lançada. Devemos ter em mente que somos incapazes, por nós mesmos, de desejar ou agir em direção a Deus. Deus mesmo proveu toda a ajuda. Assim como, Ele encerrou a todos os homens debaixo da desobediência, também usou de misericórdia para com todos: Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, para com todos usar de misericórdia. Romanos 11:32
Aqui temos o propósito de Deus revelado: Ele encerrou a humanidade em um estado orgulhoso e condenado, sem Cristo, para usar de Sua misericórdia para com todos, em Cristo.
Depois da queda, o homem se distanciou de Deus. Por isso, o reino dos céus é para ele como um distante lugar e muito estranho. Na experiência de Santo Agostinho, ao dizer de si mesmo que se encontrava “distante de Deus numa terra estranha, da desigualdade”.
Por isso, Deus em Cristo desce do céu para dessedentar o sedento: Como água fria para o sedento, tais são as boas-novas vindas de um país remoto. Provérbios 25:25. Aqui está a Boa Nova do evangelho, um mensageiro trazendo o céu para a terra.
Assim, a Boa Nova era como “uma água fresca para a alma sedenta”. Deus nos deu o seu reino, Deus nos deu o seu Filho. O Filho nos foi dado para ser a nossa vida. Isso é o suficiente. Deus não nos deu coisas “espirituais”, Ele nos deu o seu próprio Filho. “Nele temos a plenitude de sua graça”.
A “noite” de Judas serviu para que a história mais negra do homem se tornasse a mais radiante. A Cruz transforma-se num trono. O fim em um novo começo. Na Cruz estava a injustiça mais profunda que já se cometeu, e Jesus a transforma completamente, na cura da injustiça e do pecado.
Na Cruz revela o que há de pior nos homens, e o melhor de Deus. Nada havia em nós a não ser pecados. Nós nos encontrávamos em profundas trevas. Mas Deus, com seu amor e poder, vem nos livrar do poder das trevas.
Não havia em nós nenhuma inclinação para o bem, estávamos espiritualmente mortos à semelhança da terra sem forma e vazia, a espera do mover do Espírito de Deus: A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas. Gênesis 1:2.
O movimento – graças Lhe sejam dadas! – veio Dele. Ele nos resgatou das trevas. Ele nos vivificou, e não somente isso, nos vivificou juntamente com Cristo. Aquele que possui a voz, “como voz de muitas águas”, irrompeu com a chama do amor divino, aniquilando o poder das trevas.
A noite fala da ausência de Deus. Logo após a queda a “terra” fugiu da presença de Deus. A partir daí a desigualdade entre o céu e a terra ficou estabelecida. A terra sentiu na sua natureza que ela é distante e diferente do céu. Por isso, ela fugiu diante do céu até ao lugar mais baixo. É por esta razão, que a terra está imóvel na espera de um mover divino. Da terra brota a verdade, dos céus a justiça baixa o seu olhar. Salmos 85:11.
O “céu”, porém, percebeu na sua natureza que o reino da terra lhe fugiu e se estabeleceu no lugar mais baixo. Por isso o céu se derrama inteiramente de um modo profundamente amoroso. O céu foi aberto, agora, temos acesso ao Pai, por meio de Cristo.
Dos céus a justiça baixa o seu olhar. O Senhor Jesus não só desce do céu, mas abre-o para que os indignos pudessem entrar. E, o caminho escolhido pela trindade foi o Calvário: E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim. E dizia isso significando de que morte havia de morrer. João 12:32-33.
O método divino foi o mais penoso possível. Contudo, foi ali na Cruz que se manifestou o poder de Deus para desfazer todo o poder das trevas. A Cruz foi o tribunal de Deus para o mundo. Ali na Cruz todos os homens foram julgados. Ali na Cruz Deus pôs fim na raça adâmica.
Na Cruz o Seu amor julgou o nosso ódio, a sua magnanimidade julgou a nossa mesquinhez. Ali na Cruz, o nosso velho homem foi julgado. E, aquele cujos olhos foram abertos por Deus; pode cantar “o cântico do Cordeiro”. A canção de um novo começo.
O começo de uma vida em Cristo. A bem-aventurança de ser uma habitação de Deus. E de ter sido feito “agradáveis” em Cristo. Como é maravilhoso compreender e ser compreendido, contemplar e ser o próprio contemplado, conter e ser contido: este é o fim, onde o espírito do homem permanece, em repouso na união com Cristo. Como disse Santo Agostinho: Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te. Criastes-nos para Ti e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousar em Ti.
Que Deus na Sua infinita graça nos leve a dizer como a Sulamita: Leva-me tu; correremos após ti. O rei me introduziu nas suas câmaras; em ti nos regozijaremos e nos alegraremos; do teu amor nos lembraremos, mais do que do vinho; os retos te amam. Cântico dos Cânticos 1:4. Amém.
 
Soli Deo Glória.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A ESCRAVATURA PACATA NO PECADO PROTOCOLAR

Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. João 8:34

Do ponto de vista etimológico, pecar é errar a pontaria, isto é, não acertar no alvo. Numa concepção jurídica do fato, o pecado seria uma infração do código divino, gerando delito e culpa. Enquanto na avaliação teológica, o pecado é o modus vivendi autônomo e apartado de Deus. Alguém sugeriu que "o pecado é a declaração de independência de Deus feita pelo homem".
Esta atitude de auto-coroação é a responsável pela conduta off-line da raça adâmica em busca da sua autodeterminação. Somos uma geração rebelde e arrogante que pretende dirigir o seu destino num estilo autocrático. A linguagem bíblica para descrever esta insurreição é: todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, cada um se desviava pelo seu caminho. Isaías 53:6a. Aqui vemos uma postura atrevida de isolamento interesseiro ou ególatra que nos mantém presumivelmente autônomos e autômatos. Estes são como ovelhas autocéfalas e tresmalhadas. Separados de Deus, cada um pretende viver às próprias custas. Mas o desempenho que anseia pela autonomia individual é a causa da escravatura mais tirânica do egoísmo humano. É impossível a um ser finito ter uma existência emancipada num planeta dominado por espinheiros e abrolhos. Somos uma espécie escrava do pecado e profundamente soberba que não consegue respirar o ar a cada instante, sem aspirar ao trono da sua governabilidade pessoal.
A oração é o recurso espiritual que melhor identifica a nossa necessidade da direção divina. Aquele que mantém uma comunhão íntima com Deus demonstra dependência dele, enquanto a escassez na oração evidencia uma arrogante autonomia. Não é o conhecimento sobre Deus, mas o relacionamento com a Trindade que confirma a nossa filiação e afinidade na família do Pai. O pecado é antes de tudo a altivez teomânica da nossa auto-suficiência. Mas, muitas vezes, essa ufania vem muito bem disfarçada em andrajos. Um mendigo esnobe é extremamente mais ameaçador para a relação saudável no corpo do que um príncipe regente governando no seu trono. A auto-estima velada com modéstia causa mais prejuízo do que um déspota em seu posto público. Por isso, a obra de Cristo visa nos libertar da nossa autoconfiança em todas as suas manifestações. A ênfase da mensagem do Evangelho é a morte do pecador com Cristo. Ora, se o pecado é a expressão egoísta de autocracia, a salvação é a operação da graça em nos fazer totalmente dependentes da suficiência de Cristo. Pois o amor de Cristo nos constrange, julgando nós isto: um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos para os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. 2 Coríntios 5:14-15. O óbito do Cordeiro é a única trajetória aonde orbita o extermínio da arrogância adâmica.

Sem a morte do egoísmo juntamente com Cristo, não pode existir verdadeira comunhão no corpo de Cristo. O protocolo ritual do pecado visa à maximização dos desejos de reconhecimento e valorização da nossa personalidade. Ser mais, melhor e maior é a pior toxina para o adoecimento da alma ensimesmada. O inchaço do ego é a causa dos desconcertos em qualquer sociedade e agente das heresias nas fronteiras da igreja. Vejam como o apóstolo do amor se refere a um concorrente ao pódio da exclusividade. Escrevi alguma coisa à igreja; mas Diótrefes, que gosta de exercer a primazia entre eles, não nos dá acolhida. 3 João v. 9.
O princípio gerencial de Babilônia é a elevação dos patamares de visibilidade pessoal perante a opinião pública e a comercialização das almas através de estímulos ambiciosos. No mercado dos escravos emocionais se adquire a alma com moeda podre e elogios baratos. No livro do Apocalipse há referência ao comércio de almas que podem ser compradas tanto por dinheiro, salários, propinas, como por atenções especiais, confetes, presentes, banquetes e amabilidades. Assim, uma pessoa carente, volta e meia, é comercializada como escrava pela bagatela da atenção humanitária. Como todos nós somos indigentes emocionais, todos nós estamos sujeitos às normas de corretagem e às leis do comércio de escravos. Há uma multidão de gente carente neste mundo de ostentações, pagando tributos pesados pela valorização estipulada por meio de amizades calculistas, no jogo do poder. Mas é triste ver uma pessoa por quem Cristo pagou um alto preço, sendo negociada por uma cotação ridícula no balcão das pechinchas.
Satanás, usando a Pedro como o seu porta-voz, queria retirar Jesus do caminho da cruz. Sua tática foi baseada numa estimativa humanista de valoração da personalidade, enchendo-o de direitos. O Senhor, porém, percebeu a sacada, e rechaçou a proposta com veemência: Jesus, voltando-se, disse a Pedro: Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens. Mateus 16:23. A ênfase mais astuta do inferno é conquistar as pessoas mais necessitadas de atenção com prestígio e considerações especiais. Contudo, a mensagem do Evangelho é um manifesto de libertação que não admite qualquer esquema de subserviência. Ainda que o verdadeiro cristão seja um servo de Cristo em favor da sua igreja, ele nunca pode viver e servir em servilismo psíquico. Nenhum filho de Deus deve conviver com os outros, neste mundo, como um vassalo das manipulações humanistas
Uma comunidade em processo de cura não admite permuta de afetos. O amor cristão é universal e sem discriminação. Não existe na casa do Pai nenhum filho singular ou de primeira classe. A reunião dos santos é a comunhão dos mendigos aceitos incondicionalmente pela graça, que vivem uns com os outros sem o imperativo da compensação. Mesmo que a reciprocidade seja uma condição essencial do amor cristão, ela nunca se manifesta como dever categórico ou troca de benefícios. Não existe capachismo, nem agregado de favores no domicílio dos santos. O bem-estar caridoso da igreja se revela na acolhida dos trôpegos e na aceitação irrestrita dos fracassados com o mesmo consentimento com que ela foi aceita em Cristo. Portanto, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu para a glória de Deus. Romanos 5:7.

Ninguém, até hoje, foi aceito na igreja de Deus pelos seus méritos, nem permanece fiel pelas suas qualidades pessoais. Todos nós fomos aceitos exclusivamente pela graça e ficamos firmes só pela graça. Sendo assim, "o cristão nunca tem falta do que precisa quando possui as insondáveis riquezas da graça de Deus em Cristo". Toda evolução espiritual é tão somente pela graça. O estilo da igreja de Deus é parecido com o milagre do tanque de Betesda, a casa da Misericórdia, sendo a congregação de todos os indigentes indignos, mas aceitos irrestritamente pela suficiência de Cristo. Por isso, segundo Agostinho de Hipona, "a suficiência dos meus méritos está em saber que os meus méritos nunca serão suficientes". E é por intermédio de Cristo que temos tal confiança em Deus; não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus. 2 Coríntios 3:4-5.
O pior problema na história do povo de Deus sempre foi o pecado da elevação espiritual. No fundo do nosso ser, com freqüência, aparece um germe sutil de peculiaridade que acaba se inflamando em altiva demonstração de competência ou à cata da importância pública. A grande maioria dos peregrinos sofre de um apetite exagerado por reconhecimento, que termina gerando conflito e desencadeando um processo de divisão na convivência do povo de Deus.
O pecado da singularidade é um dos mais difíceis de serem percebidos por nós, além do que, a obra mais importante do Diabo é levar-nos a ter um bom conceito de nós mesmos. Contudo, é apropriado considerar o que disse William Law sobre este assunto: "se o homem precisa gloriar-se de qualquer coisa como sua, deve fazê-lo em relação à sua miséria e ao seu pecado, pois nada mais do que isto é propriedade dele." Não há nada no espírito do homem que se oponha mais ao Espírito de Deus do que essa atitude de excepcionalidade arrogante.
A insatisfação constante, a murmuração insistente e a crítica acirrada são características sintomáticas de uma escravatura capciosa e disfarçada que viaja sorrateiramente nas entranhas de uma alma enfatuada. Mas no mundo em que Cristo viveu plenamente satisfeito em fazer sempre a vontade do seu Pai, é uma vergonha para nós, que confessamos a fé cristã, vivermos descontentes e implicantes. O mau humor da alma é um sinal claro de uma vida prisioneira do egoísmo. A pessoa liberta de si é aquela que vive emancipada do pior tirano, já que a festa do contentamento começa quando nos vemos livres de nós mesmos. Porque nenhum de nós vive para si mesmo, nem morre para si. Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor. Romanos 14:7-8.
Eric Alexander disse com muita propriedade: "pecado não é apenas ofensa que necessita de perdão, mas uma poluição que necessita de purificação". Ora, se viver para mim mesmo é a base poluente do pecado, então preciso da radical operação da cruz, para que em Cristo possa viver pela graça de Deus, inteiramente para o Senhor como membro do seu corpo. Alguém disse que a história da igreja tem mostrado muitas tolices, incoerências e irrelevâncias no meio do povo de Deus. Mas, disse ele com bom humor, eu amo minha mãe, a despeito de suas fraquezas e rugas. Creio que o amor de Deus é a realidade espiritual mais adequada no universo para evidenciar o caráter de Deus e a vitória sobre a escravatura pacata no pecado protocolar. Nós amamos porque ele nos amou primeiro. Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados. 1 João 4:18 e 1 Pedro 4:8.
 
Soli Deo Glória.




terça-feira, 20 de novembro de 2012

A RELEVÂNCIA DA RECONCILIAÇÃO

A reconciliação é um programa da administração divina. Deus é quem toma a iniciativa da harmonização das partes ao tornar-se confinante com o fugitivo, a fim de poder aproximar-se dele. Primeiro Deus se achega ficando bem perto do pecador rebelde para em seguida atrair o seu coração para ele mesmo.
Eu só posso buscar a Deus realmente porque ele se aproximou da humanidade e se revelou na dimensão do meu entendimento. Ninguém consegue buscar um Deus absoluto e invisível, escondido nas nuvens do desconhecido, se ele mesmo não se manifestar dentro dos limites da nossa abrangência racional. Mesmo antes da encarnação do Verbo divino foi necessário ouvir a voz de Deus para iniciar a aproximação. E chamou o SENHOR Deus ao homem e lhe perguntou: Onde estás? Gênesis 3:9.
O pecado separou a humanidade de Deus tornando-a desertora. A história da nossa raça é um assunto de evasão e invasão. Evadimos da presença de Deus e invadimos o mundo dos esconderijos. Somos uma espécie apavorada que vive de máscaras procurando labirintos e escondida em tangas e tocas construídas pela religião. Ele respondeu: Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo, e me escondi. Gênesis 3:10.
Não foi o pecador sentenciado pela desobediência e estigmatizado pela culpa quem deu o primeiro passo em direção ao encontro. O pecado nos encheu de arrogância e nos fez autônomos em relação ao Criador. No fundo da nossa alma há uma aversão contra Deus que nos deixa indispostos para com ele. Por isso, o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. Romanos 8:7.
O ser humano nunca iria se reconciliar com Deus por conta própria. A reconciliação é um empreendimento da graça de Deus, que se tornou impecavelmente concreto na encarnação de Cristo. Foi justamente no corpo de Jesus que Deus e a humanidade ficaram vizinhos na mesma pessoa. As duas naturezas, divina e humana, unidas numa mesma pessoa é o mais próximo de Deus que se pode chegar. Buscar ao Senhor enquanto está perto é encontrar-se com Deus em Jesus.
Cristo Jesus é a aproximação de Deus mais achegada ao ser humano que se pode ter. Quando as duas naturezas se encontram numa única pessoa sem qualquer alteração na essência ou redução na identidade, temos o milagre de um acordo que vem promover a amizade eterna entre as partes. A união da divindade com a humanidade é a reunião de conciliação onde são desfeitos os efeitos da hostilidade do pecado.
A reconciliação que desfaz a desavença não vem acusando o culpado. Ainda que o pecador seja o responsável pelo desacordo, Cristo não incrimina o réu. A mensagem do evangelho apresenta a parte ultrajada vindo em busca daquela que afrontou sem qualquer incriminação. Na verdade, Cristo, a parte afrontada, vem assumindo a culpa do culpado e oferecendo o seu perdão incondicional sem acusá-lo por causa do seu tropeço.
Jesus não envergonha o pecador por seu pecado, antes assume a vergonha do transgressor, sem, contudo, culpá-lo por sua transgressão. O perdão só é verdadeiro perdão quando aquele que perdoa assume a conta do devedor pagando-a integralmente, sem acusá-lo pela dívida, nem cobrá-lo posteriormente.
O perdão não é dado ao pecador em decorrência do seu arrependimento, mas este passa a existir em razão daquele. O arrependimento do sujeito não produz a reconciliação com Deus, uma vez que é o perdão de Cristo que gera o arrependimento, e ao mesmo tempo, a reconciliação. Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. 2 Coríntios 5:18-19.
Cristo levou sobre si os pecados dos pecadores e não jogou em rosto a culpa dos culpados. A vergonha dos nossos atos lhe fora imputada, mas ele não nos envergonhou atirando sobre nós a nossa infâmia. A reconciliação não agita a sujeira decantada, nem sopra sobre a carniça para espalhar o mau cheiro. O Espírito Santo não assopra corrupção. O Pai assume a desmoralização do pecador e imputa a sua justiça através de Cristo.
A reconciliação, portanto, parte do Pai que resolve assumir os pecados dos pecadores mediante a morte de seu Filho, sem fazer qualquer acusação contra os transgressores mais indignos. Todo sistema de denúncia e incriminação não faz parte da obra da redenção. A acusação é papel do Maligno e de sua tropa. Então, ouvi grande voz do céu, proclamando: Agora, veio a salvação, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus. Apocalipse 12:10.
Na visão bíblica, a delação é um papel sujo do acusador. O Espírito Santo nunca recrimina o implicado a fim de aviltá-lo, nem expõe ao ridículo a feiúra do culpado. Ainda que ele convença o réu da sua terrível infração, não é do caráter divino a censura pública dos pecadores. O Advogado do evangelho não faz exigências que maculem os seus clientes. Jesus jamais defendeu o doloso realçando ao espectador a sua falcatrua.
A reconciliação promovida pelo Pai não vem instigada por qualquer fórmula de repreensão ou acusação. Na verdade Cristo assume a censura do acusado e levando sobre si a pena do pecador não o bombardeia de queixas ou ensaboadelas. A obra da redenção não salienta a vileza inegável do fraudulento diante dos outros, uma vez que toda a sua culpa recai sobre o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
Olhando para a seriedade do julgamento onde Cristo Jesus foi condenado é que nós podemos perceber a gravidade do nosso pecado. Ao observar a truculência da sentença vemos a magnitude da nossa transgressão, mas vemos também que não há qualquer acusação da parte de Deus para nos enrubescer.
Todo aquele que procura acusar um infrator não consegue promover uma verdadeira reconciliação. A argüição em si mesma só fomenta resistência, ocasionando ainda mais desavença. Por esse motivo, todo arrependimento genuinamente cristão tem que ser a rigor livre de apelações e denúncias. Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento? Romanos 2:4.
O remorso, normalmente, é fruto de uma descoberta. Quando alguém é apanhado com a boca na botija, se tem algum senso moral, com freqüência fica cabisbaixo. O fato de ter sido desvendado o acontecimento acaba gerando vergonha e remorso. Mas o arrependimento, primeiramente, não significa acabrunhamento moral. O que leva o pecador a se arrepender é a bondade incondicional de Deus.
Na obra da reconciliação com Deus há um desgosto que é a causa da contrição, mas isto não quer dizer vexame. O Pai não encabula o filho afrontando-o diante dos outros, mesmo porque a tristeza segundo Deus produz arrependimento para a salvação, que a ninguém traz pesar; mas a tristeza do mundo produz morte. 2 Coríntios 7:10.
Sendo assim, buscar ao Senhor enquanto está perto é buscar o Deus que nos buscou em seu amor eterno. Nós só podemos buscá-lo porque ele nos buscou primeiro. Ele se tornou adjacente ao homem na encarnação ao receber a natureza humana, e mais achegado ainda na crucificação, quando tomou sobre si também os nossos pecados. Aqui nós temos a perfeita identificação do Salvador com o pecador trazendo a libertação da culpa.
Toda a operação que nos reconcilia com Deus foi realizada pela Trindade Santa mediante o sacrifício de Cristo. Embora tenhamos parte nesse processo, essa participação vem através da nossa natureza pecadora e dos seus pecados, por isso não temos nenhum direito. Porque, se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida; e não apenas isto, mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, por intermédio de quem recebemos, agora, a reconciliação. Romanos 5:10-11.
A rebeldia do pecado nos fez inimigos de Deus, mas a obra perfeita de Cristo nos reconciliou com ele para que sejamos também agentes da reconciliação. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. 2 Coríntios 5:20.
Os embaixadores do Reino de Deus não são acusadores da vida alheia, muito menos jogadores politiqueiros. O papel de um diplomata de Cristo é falar a mensagem da redenção com o sotaque do céu. Os filhos de Aba não abonam qualquer tipo de conversa maledicente, nem fazem parte do correio de más notícias. O discurso desse corpo diplomático é construído no sentido da reconciliação dos pecadores através da suficiência de nosso Senhor Jesus Cristo.
Do mestre de canto sobre a ária “os lírios”, dos filhos de Coré, o salmista diz: És os mais belo dos filhos dos homens, a graça escorre dos teus lábios, porque Deus te abençoa para sempre. Salmo 45:3 (BJ). A linguagem dos filhos abençoados de Deus é o fluir gracioso da reconciliação dos sublevados e da edificação de sua família. Nenhum membro da casa do Amor tem direito de falar a lengalenga que ofende os trôpegos ou fere os sarados. Cristo se tornou próximo para nos reconciliar com o Pai, e nós somos agora os embaixadores da reconciliação para com todos os eleitos da graça. Bendito sejam os reconciliados que vivem para o ministério da reconciliação.
 
 
Soli Deo Glória.