quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A ESCRAVATURA PACATA NO PECADO PROTOCOLAR

Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. João 8:34

Do ponto de vista etimológico, pecar é errar a pontaria, isto é, não acertar no alvo. Numa concepção jurídica do fato, o pecado seria uma infração do código divino, gerando delito e culpa. Enquanto na avaliação teológica, o pecado é o modus vivendi autônomo e apartado de Deus. Alguém sugeriu que "o pecado é a declaração de independência de Deus feita pelo homem".
Esta atitude de auto-coroação é a responsável pela conduta off-line da raça adâmica em busca da sua autodeterminação. Somos uma geração rebelde e arrogante que pretende dirigir o seu destino num estilo autocrático. A linguagem bíblica para descrever esta insurreição é: todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, cada um se desviava pelo seu caminho. Isaías 53:6a. Aqui vemos uma postura atrevida de isolamento interesseiro ou ególatra que nos mantém presumivelmente autônomos e autômatos. Estes são como ovelhas autocéfalas e tresmalhadas. Separados de Deus, cada um pretende viver às próprias custas. Mas o desempenho que anseia pela autonomia individual é a causa da escravatura mais tirânica do egoísmo humano. É impossível a um ser finito ter uma existência emancipada num planeta dominado por espinheiros e abrolhos. Somos uma espécie escrava do pecado e profundamente soberba que não consegue respirar o ar a cada instante, sem aspirar ao trono da sua governabilidade pessoal.
A oração é o recurso espiritual que melhor identifica a nossa necessidade da direção divina. Aquele que mantém uma comunhão íntima com Deus demonstra dependência dele, enquanto a escassez na oração evidencia uma arrogante autonomia. Não é o conhecimento sobre Deus, mas o relacionamento com a Trindade que confirma a nossa filiação e afinidade na família do Pai. O pecado é antes de tudo a altivez teomânica da nossa auto-suficiência. Mas, muitas vezes, essa ufania vem muito bem disfarçada em andrajos. Um mendigo esnobe é extremamente mais ameaçador para a relação saudável no corpo do que um príncipe regente governando no seu trono. A auto-estima velada com modéstia causa mais prejuízo do que um déspota em seu posto público. Por isso, a obra de Cristo visa nos libertar da nossa autoconfiança em todas as suas manifestações. A ênfase da mensagem do Evangelho é a morte do pecador com Cristo. Ora, se o pecado é a expressão egoísta de autocracia, a salvação é a operação da graça em nos fazer totalmente dependentes da suficiência de Cristo. Pois o amor de Cristo nos constrange, julgando nós isto: um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos para os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. 2 Coríntios 5:14-15. O óbito do Cordeiro é a única trajetória aonde orbita o extermínio da arrogância adâmica.

Sem a morte do egoísmo juntamente com Cristo, não pode existir verdadeira comunhão no corpo de Cristo. O protocolo ritual do pecado visa à maximização dos desejos de reconhecimento e valorização da nossa personalidade. Ser mais, melhor e maior é a pior toxina para o adoecimento da alma ensimesmada. O inchaço do ego é a causa dos desconcertos em qualquer sociedade e agente das heresias nas fronteiras da igreja. Vejam como o apóstolo do amor se refere a um concorrente ao pódio da exclusividade. Escrevi alguma coisa à igreja; mas Diótrefes, que gosta de exercer a primazia entre eles, não nos dá acolhida. 3 João v. 9.
O princípio gerencial de Babilônia é a elevação dos patamares de visibilidade pessoal perante a opinião pública e a comercialização das almas através de estímulos ambiciosos. No mercado dos escravos emocionais se adquire a alma com moeda podre e elogios baratos. No livro do Apocalipse há referência ao comércio de almas que podem ser compradas tanto por dinheiro, salários, propinas, como por atenções especiais, confetes, presentes, banquetes e amabilidades. Assim, uma pessoa carente, volta e meia, é comercializada como escrava pela bagatela da atenção humanitária. Como todos nós somos indigentes emocionais, todos nós estamos sujeitos às normas de corretagem e às leis do comércio de escravos. Há uma multidão de gente carente neste mundo de ostentações, pagando tributos pesados pela valorização estipulada por meio de amizades calculistas, no jogo do poder. Mas é triste ver uma pessoa por quem Cristo pagou um alto preço, sendo negociada por uma cotação ridícula no balcão das pechinchas.
Satanás, usando a Pedro como o seu porta-voz, queria retirar Jesus do caminho da cruz. Sua tática foi baseada numa estimativa humanista de valoração da personalidade, enchendo-o de direitos. O Senhor, porém, percebeu a sacada, e rechaçou a proposta com veemência: Jesus, voltando-se, disse a Pedro: Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens. Mateus 16:23. A ênfase mais astuta do inferno é conquistar as pessoas mais necessitadas de atenção com prestígio e considerações especiais. Contudo, a mensagem do Evangelho é um manifesto de libertação que não admite qualquer esquema de subserviência. Ainda que o verdadeiro cristão seja um servo de Cristo em favor da sua igreja, ele nunca pode viver e servir em servilismo psíquico. Nenhum filho de Deus deve conviver com os outros, neste mundo, como um vassalo das manipulações humanistas
Uma comunidade em processo de cura não admite permuta de afetos. O amor cristão é universal e sem discriminação. Não existe na casa do Pai nenhum filho singular ou de primeira classe. A reunião dos santos é a comunhão dos mendigos aceitos incondicionalmente pela graça, que vivem uns com os outros sem o imperativo da compensação. Mesmo que a reciprocidade seja uma condição essencial do amor cristão, ela nunca se manifesta como dever categórico ou troca de benefícios. Não existe capachismo, nem agregado de favores no domicílio dos santos. O bem-estar caridoso da igreja se revela na acolhida dos trôpegos e na aceitação irrestrita dos fracassados com o mesmo consentimento com que ela foi aceita em Cristo. Portanto, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu para a glória de Deus. Romanos 5:7.

Ninguém, até hoje, foi aceito na igreja de Deus pelos seus méritos, nem permanece fiel pelas suas qualidades pessoais. Todos nós fomos aceitos exclusivamente pela graça e ficamos firmes só pela graça. Sendo assim, "o cristão nunca tem falta do que precisa quando possui as insondáveis riquezas da graça de Deus em Cristo". Toda evolução espiritual é tão somente pela graça. O estilo da igreja de Deus é parecido com o milagre do tanque de Betesda, a casa da Misericórdia, sendo a congregação de todos os indigentes indignos, mas aceitos irrestritamente pela suficiência de Cristo. Por isso, segundo Agostinho de Hipona, "a suficiência dos meus méritos está em saber que os meus méritos nunca serão suficientes". E é por intermédio de Cristo que temos tal confiança em Deus; não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus. 2 Coríntios 3:4-5.
O pior problema na história do povo de Deus sempre foi o pecado da elevação espiritual. No fundo do nosso ser, com freqüência, aparece um germe sutil de peculiaridade que acaba se inflamando em altiva demonstração de competência ou à cata da importância pública. A grande maioria dos peregrinos sofre de um apetite exagerado por reconhecimento, que termina gerando conflito e desencadeando um processo de divisão na convivência do povo de Deus.
O pecado da singularidade é um dos mais difíceis de serem percebidos por nós, além do que, a obra mais importante do Diabo é levar-nos a ter um bom conceito de nós mesmos. Contudo, é apropriado considerar o que disse William Law sobre este assunto: "se o homem precisa gloriar-se de qualquer coisa como sua, deve fazê-lo em relação à sua miséria e ao seu pecado, pois nada mais do que isto é propriedade dele." Não há nada no espírito do homem que se oponha mais ao Espírito de Deus do que essa atitude de excepcionalidade arrogante.
A insatisfação constante, a murmuração insistente e a crítica acirrada são características sintomáticas de uma escravatura capciosa e disfarçada que viaja sorrateiramente nas entranhas de uma alma enfatuada. Mas no mundo em que Cristo viveu plenamente satisfeito em fazer sempre a vontade do seu Pai, é uma vergonha para nós, que confessamos a fé cristã, vivermos descontentes e implicantes. O mau humor da alma é um sinal claro de uma vida prisioneira do egoísmo. A pessoa liberta de si é aquela que vive emancipada do pior tirano, já que a festa do contentamento começa quando nos vemos livres de nós mesmos. Porque nenhum de nós vive para si mesmo, nem morre para si. Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor. Romanos 14:7-8.
Eric Alexander disse com muita propriedade: "pecado não é apenas ofensa que necessita de perdão, mas uma poluição que necessita de purificação". Ora, se viver para mim mesmo é a base poluente do pecado, então preciso da radical operação da cruz, para que em Cristo possa viver pela graça de Deus, inteiramente para o Senhor como membro do seu corpo. Alguém disse que a história da igreja tem mostrado muitas tolices, incoerências e irrelevâncias no meio do povo de Deus. Mas, disse ele com bom humor, eu amo minha mãe, a despeito de suas fraquezas e rugas. Creio que o amor de Deus é a realidade espiritual mais adequada no universo para evidenciar o caráter de Deus e a vitória sobre a escravatura pacata no pecado protocolar. Nós amamos porque ele nos amou primeiro. Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados. 1 João 4:18 e 1 Pedro 4:8.
 
Soli Deo Glória.




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