terça-feira, 20 de março de 2012

OS CONTRATEMPOS DA SALVAÇÃO

 
Disse-lhe Pedro: Ainda que todos se escandalizem, eu, jamais! Marcos 14:29.
A salvação é um estado de bem-aventurança concedido pela graça de Deus ao pecador, mas não é um estado de perfeição ou impecabilidade. Ninguém é salvo pelos seus méritos, nem as virtudes humanas cooperam para que alguém receba as dádivas divinas.

A Bíblia mostra que não há salvação dos pecadores como resultado de suas qualidades pessoais. Deus salva unicamente pela graça, independentemente de qualquer valor individual. Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Efésios 2:8-9.

Está claro que Deus não salva o sujeito pelos seus merecimentos subjetivos. Nem mesmo é o pecado em si a causa essencial da salvação. Ainda que o pecado seja o motivo da queda humana, ele não é a razão da salvação. A vontade soberana de Deus é a causa de toda a criação e o seu amor incondicional a origem da salvação. Ele nos salva movido por seu amor gracioso e nunca constrangido pela pecaminosidade humana.

Todos os que são salvos foram salvos unicamente pela graça, sem qualquer expectativa de idoneidade. Nenhum pecador pode exigir a menor atenção de Deus em pretexto de alguma virtude. Tudo o que Deus faz para a salvação é somente pela graça. E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça. Romanos 11:6.

Até aqui a boa tradição protestante está afinada. A questão começa depois da salvação, quando a necessidade de auto-afirmação tenta se sobrepor à afirmação do alto, de que a vida cristã é exclusivamente pela graça. A demanda principia com o rompante de autonomia. A atitude de Pedro é um exemplo potente dessa indigência de singularidade.

A individualidade é um fato incontestável. Todos nós somos únicos como pessoas, todavia a nossa unicidade pessoal não garante a nossa excepcionalidade relacional. A distinção baseada na superioridade contraria a sensatez. Essa extravagância em pretender ser um modelo tem causado as maiores catástrofes na história da igreja.

Nada pode ser mais crítico do ponto de vista da salvação do que a aspiração à originalidade. A presunção em se parecer dessemelhante e mais qualificado que os outros é exatamente a comprovação de nossa desqualificação como discípulos de Jesus Cristo. Pedro se achava melhor e mais habilitado para testemunhar bem de Cristo. O seu fracasso foi exatamente a sua extravagante ufania.

Pedro foi sempre muito rápido no gatilho, mas também exagerava no calibre da munição. Atirar numa rolinha com arma de caçar elefante é um desperdício total e absurdo monstruoso. No caso de Pedro, o tiro acabou saindo pela culatra e o pobre apóstolo se feriu em cheio. Levi detalha com outras palavras o volume do projétil. Disse-lhe Pedro: Ainda que venhas a ser um tropeço para todos, nunca o serás para mim. Mateus 26:33.

Quem confia em si mesmo encontra-se no maior perigo. A questão agora não é a autoconfiança para a salvação, mas depois de ter sido salvo. Como é sutil a proeminência na vida dos crentes. A necessidade de evidência sempre evidencia um defeito de personalidade muito grave, por isso H W Beecher disse: "a presunção é a doença da alma humana mais difícil de ser curada". Como é complicado desfazer a tal auto-estima

Alguém se referiu ao crente arrogante como shiita. Ele estava lamentando daquele que se achava salvo e desprezava os outros que não criam como ele crê. Além de desconsiderar aqueles que são diferentes, ainda os afasta da salvação em Cristo. Há muita gente sofrendo com a repulsa daqueles que se acham os melhores.

Jesus propôs também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros: Lucas 18:9. Nessa estória Jesus apresenta um religioso empavonado que exibe as suas qualidades acima das suspeitas e um marginalizado, sem qualquer reconhecimento. Os dois aparecem no templo para orar, e enquanto o primeiro se justifica pelas suas obras, o segundo clama por misericórdia.

Segundo Jesus, o fariseu, que além de se justificar por meio dos seus merecimentos, condenava o publicano, excluindo-o da sua agenda. Eu não sou como os demais é a forma mais baixa e arrogante de relacionamento que se pode manter com os outros.

Jesus era uma pessoa singular, mas não se recusava estar com a marginalidade. Ele não era pecador, contudo fazia questão de comer com os pecadores excluídos. Aliás, essa foi uma das críticas feitas pelos seus antagonistas. E murmuravam os fariseus e os escribas, dizendo: Este recebe pecadores e come com eles. Lucas 15:2.

Edward Marbury disse que "uma boa opinião acerca de si mesmo é a ruína de todas as virtudes". Ainda que um aidético seja curado da sua enfermidade, ele nunca poderá ignorar os que são aidéticos. O desapreço dos salvos para com os dispersos e diferentes é uma acusação contra aquele que eles dizem ser o Salvador. Ora, se Jesus, que não tinha pecado, comia com os pecadores, por que nós rejeitamos os diferentes e dissidentes?

Além do exibicionismo tão presente no meio dos crentes que querem ser notáveis, até mesmo na humildade, outro contratempo que perturba a compreensão da salvação é a falta de dependência de Deus. Pedro mostrou a sua cara arrogante e o seu estilo auto-suficiente quando quis ser único. Independência é a palavra que define melhor o pecado.

Não há nada mais terrível para desbancar a pose da confiabilidade pessoal do que um bom fracasso. Creio que a graça não só incrementa a obra positiva de Deus, como patrocina a desconstrução de todo o sistema de autoconfiança. Segundo Deus, a auto-estima é lesiva ao homem. Assim diz o SENHOR: Maldito o homem que confia no homem, faz da carne mortal o seu braço e aparta o seu coração do SENHOR! Jeremias 17:5.

O extermínio do autocontrole é uma obra de importância capital para a verdadeira conexão com o Senhor. O ser humano só estará sujeito por inteiro a Cristo se ele vier a se frustrar realmente consigo mesmo. Nenhum treinador joga a toalha se o lutador tem chance de vitória. É o fracasso do pugilista que exige o abandono da luta.

Pedro precisava gorar. O aborto da esperança humana é o início da salvação de Deus. Ninguém pode se render de fato ao Senhor se não se decepcionar verdadeiramente consigo mesmo. A frustração é um caminho assegurado à conversão.

Um homem seguro de si mesmo é uma pessoa que dispensa a graça de Deus. Alguém disse que temia muito mais o sucesso pessoal do que o fracasso na vida dos crentes. Aquele que se basta nunca vai bater à porta da misericórdia, e sendo assim, o insucesso é uma passagem garantida para quem resolve desistir de se governar. Não há via mais esperançosa de salvação do que aquela que desvia o ser humano de sua autoconfiança.

Jesus precisou evidenciar a Pedro que ele não era tão confiável como pensava. Replicou-lhe Jesus: Em verdade te digo que, nesta mesma noite, antes que o galo cante, tu me negarás três vezes. Mateus 26:34. O Senhor procurou mostrar que a natureza humana não merece crédito, uma vez que o coração é essencialmente enganoso, e que uma declaração de fé não significa uma demonstração da verdadeira fé.

Mas Pedro estava coberto de certeza. Ele não via a sua falsa devoção, já que se encontrava autocentrado. O sujeito autárquico, isto é, aquele que governa a si mesmo e se basta, não consegue enxergar o embuste do seu coração. Disse-lhe Pedro: Ainda que me seja necessário morrer contigo, de nenhum modo te negarei. E todos os discípulos disseram o mesmo. Mateus 26:35.

É interessante como a presunção de autonomia instiga os outros. Uma liderança auto-sustentável costuma produzir uma comunidade inchada. A influência do Pedro abastado de autoconfiança desencadeou uma reação dominó e todos os discípulos tinham o mesmo discurso. Há um grande perigo para o povo quando os dirigentes se encastelam na cadeira das formalidades legais. O legalismo é a camisa de força da insanidade espiritual.

A altivez precisa da queda. Não é boa a candidatura à autodeterminação da vida. O ser humano bem-aventurado é aquele que confia no Senhor; e sendo assim, o coração do homem traça o seu caminho, mas o SENHOR lhe dirige os passos. Provérbios 16:9. A vida espiritual autêntica depende totalmente da soberania de Deus.

O fracasso de Pedro foi a sua grande Universidade. Ele aprendeu que é preciso morrer com o Senhor para poder viver pelo Senhor. Ninguém pode confiar em si mesmo e ser um discípulo de Cristo. Graças a Deus pelas derrotas na vida dos crentes, pois só a fraqueza pode garantir a dependência da graça.

Paulo foi primoroso quando transmitiu o ensino do Senhor sobre a legitimidade da vida espiritual. Ele encontrava-se torturado com a sua fraqueza pessoal e desapontado consigo mesmo: Então, o Senhor me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. 2 Coríntios 12:9.

Não é a força e sim a fraqueza que determina o derramamento do poder de Deus na vida dos seus filhos. Aquele que se acha forte está correndo um grande risco. O fracasso na vida dos filhos de Deus é a chance de levá-los à única fonte do poder. Só o Senhor poderá firmar os passos dos seus filhos. Ele faz forte ao cansado e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor. Os jovens se cansam e se fatigam, e os moços de exaustos caem, mas os que esperam no SENHOR renovam as suas forças, sobem com asas como águias, correm e não se cansam, caminham e não se fatigam. Isaías 40:29-31.

Todo aquele que foi salvo pela graça, sabe que sua vida cristã depende, do princípio ao fim, da graça de Deus, em meio às suas grandes fraquezas. Paulo foi também categórico ao dizer que tudo em sua vida e ministério dependia tão-somente da graça de Deus. Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi concedida, não se tornou vã; antes, trabalhei muito mais do que todos eles; todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo. 1 Coríntios 15:10. Graças ao Pai pelas nossas decepções!


 

Solo Deo Glória

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