domingo, 4 de março de 2012

17.O Período Sinódico - (1700-1791)

 
Pedro estava determinado a que não existissem mais Nicons. Em 1700, quando o Patriarca Adriano morreu, Pedro não tomou nenhuma medida para apontar seu sucessor e, em 1721, ele fez publicar o célebre Regulamentos Espirituais, que declarava estar o Patriarcado abolido e colocava em seu lugar uma comissão, o Colégio Espiritual do Santo Sínodo. Este era composto por doze membros, três dos quais eram bispos e o resto tirado de chefes de mosteiros ou do clero casado.

A constituição do Sínodo não estava baseada na Lei Canônica Ortodoxa, mas copiada dos Sínodos eclesiásticos protestantes da Alemanha. Seus membros não eram escolhidos pela Igreja mas nomeados pelo Imperador e o Imperador que nomeava podia também, à sua vontade, demiti-los. Enquanto um Patriarca, tendo o cargo pela vida toda, poderia talvez desafiar o Tsar, a um membro do Sínodo não era permitido nenhum ato de heroísmo, pois ele seria simplesmente retirado. O Imperador não era chamado "Chefe da Igreja," mas havia se lhe dado o título de "Juiz Supremo do Colégio Espiritual."

Reuniões do Sínodo não eram assistidas pelo Imperador em pessoa, mas por um oficial do governo, o Procurador Chefe. O Procurador, apesar de se sentar numa mesa separada e não tomar parte nas discussões, na prática tinha considerável poder sobre os assuntos da Igreja, e era de fato, ainda que não de nome, um "Ministro da Religião."

Os Regulamentos Espirituais viam a Igreja não como uma instituição divina, mas como um departamento de Estado. Baseado principalmente em proposições seculares ele fazia poucas concessões para aquilo que era chamado pela reforma inglesa de "Direitos de Coroa do Redentor." Isso era verdade não só com relação à alta administração da Igreja, mas também para muitas de suas outras regras. Um padre que ouvisse, durante a confissão, qualquer esquema que o governo considerasse sedição, era ordenado a violar o segredo do sacramento e suprir a polícia com nomes e detalhes completos. O monasticismo era grosseiramente acusado de ser origem de inumeráveis desordens e perturbações e colocado sob muitas restrições. Novos mosteiros não podiam ser fundados sem permissão especial; monges eram proibidos de viver como eremitas; nenhuma mulher abaixo da idade de cinqüenta anos era autorizada a fazer votos como monja.

Existia um propósito deliberado por trás dessas restrições aos mosteiros — centros principais de trabalhos sociais na Rússia nesse tempo. A abolição do Patriarcado era parte de um processo maior: Pedro procurava não só privar a Igreja de liderança, mas também eliminar a participação dela em qualquer trabalho social. Os sucessores de Pedro circunscreveram os trabalhos dos mosteiros ainda mais drasticamente. Elizabeth (reinou de 1741-1762), confiscou a maioria das propriedades monásticas e Catarina II (reinou 1762-1796) suprimiu mais da metade dos mosteiros e nos que permaneceram abertos, ela impôs um estrito limite ao número de monges. O fechamento dos mosteiros foi um desastre nas províncias mais distantes da Rússia, onde eles eram virtualmente os únicos centros culturais e de caridade. Mas apesar do trabalho social da Igreja ter sido gravemente restringido, ele nunca cessou completamente.

O Regulamentos Espirituais deixaram vivas leituras, particularmente em seus comentários sobre comportamento do clero. Fomos informados que padres e diáconos "estando bêbados, pelas ruas, ou o que é pior, ao beber dão vivas ou saúdam a Igreja," bispos estão obrigados a controlar que o clero" não ande de maneira indolente, fazendo som monótono, nem se deitem pelas ruas para dormir, não bebam em tavernas nem se gabem da força de seus chefes" ( The Spiritual Regulations, traduzido por Thomas Consett no The Presente State and Regulations of the Church of Rússia, London, 1729, pp. 157 — 158). Teme-se que apesar dos esforços do movimentos de reforma do século precedente, essas restrições não eram inteiramente injustificadas.

Existem também alguns vívidos conselhos para os padres:

Um padre não tem ocasião para empurrar ou suspirar como se estivesse remando um barco. Não tem necessidade de bater palmas, nem colocar seus braços para o alto, nem pular ou saltar, nem dar risadinhas ou gargalhar, nem tem qualquer razão para lamentações horrendas com urros. Pois ele não deveria estar nunca tão aflito em espírito, porque essas emoções são todas supérfluas e indecentes, e perturbam a Audiência. (Consett, op citado, pág. 80. O caráter pitoresco de estilo deve-se mais a Consett que ao original russo).

Demasiado para os Regulamentos Espirituais.As reformas religiosas de Pedro naturalmente levantaram oposição na Rússia, mas ela foi rudemente silenciada,. Fora da Rússia o respeitável Dositeu fez um vigoroso protesto; mas as Igrejas Ortodoxas sob domínio turco não estavam em posição de intervir efetivamente e em 1723 os quatro antigos Patriarcas aceitaram a abolição do Patriarcado de Moscou e reconheceram a constituição do Santo Sínodo.

O sistema de governo da Igreja que Pedro estabeleceu continuou em vigor até 1917. O período sinódico na historia da Igreja russa é usualmente representado como um período de declínio, com a Igreja em completa subserviência ao Estado. Certamente um olhar superficial ao século dezoito serviria para confirmar esse veredicto. Foi um período de uma ocidentalização doentia da arte na Igreja, da música da Igreja e da teologia. Aqueles que se rebelaram contra o seco escolasticismo das academias teológicas voltaram-se não para os ensinamentos de Bizâncio e da velha Rússia, mas para movimentos religiosos ou pseudo- religiosos do ocidente contemporâneo: misticismo protestante, pietismo alemão, maçonaria (os Ortodoxos são terminante proibidos, sob pena de excomunhão, de se tornarem maçons) e para outros movimentos semelhantes. Proeminentes entre o alto clero eram prelados da corte como Ambrosio (Zertiss-Kamensky), Arcebispo de Moscou e Kaluga, que na sua morte em 1771 deixou (entre outras possessões) 252 camisas de fino linho e nove óculos com armação de ouro.

Mas esse é um lado só, do quadro do século dezoito. O Santo Sínodo, apesar de sua objetável constituição teórica, na prática governava eficientemente. Homens de Igreja reflexivos estavam alertas para com os defeitos das reformas de Pedro e submetiam-se a elas sem necessariamente concordar. A teologia estava ocidentalizada, mas os padrões de ensino eram altos. Por trás da fachada de ocidentalização, a verdadeira vida da Rússia Ortodoxa continuava sem interrupção Ambrosio Zertiss- Kamensky representou um tipo de bispo russo, mas existiram outros bispos de caráter muito diferente, verdadeiros monges e pastores, tais como Santo Tikon de Zadonsk (1724-1783), bispo de Voronezh grande pregador e escritor fluente. Tikon é particularmente interessante como exemplo de alguém que, como a maioria de seus contemporâneos, foi fortemente influenciado pelo ocidente, mas que ao mesmo tempo permaneceu firmemente enraizado na tradição clássica da espiritualidade Ortodoxa. Ele seguiu muitos exemplos de livros de devoção alemães e anglicanos; suas meditações detalhadas sobre os sofrimentos físicos de Jesus são mais típicos do Catolicismo Romano do que da Ortodoxia; na sua própria vida de oração ele passou por uma experiência similar a da noite escura da alma, como descrito por místicos ocidentais como São João da Cruz. Mas Tikon foi também parecido externamente a Teodósio e Sérgio, a Nilo e aos não-possessores como muitos Santos russos, leigos e monges ao mesmo tempo. Ele tinha especial prazer em ajudar os pobres e ficava mais feliz quando estava conversando com gente simples — camponeses, mendigos e até mesmo criminosos.

A segunda parte do período Sinódico, o século dezenove, apesar de ser um período de declínio, foi um tempo de grande renascimento na Igreja russa. Houve um afastamento de movimentos religiosos e pseudo-religiosos do Ocidente contemporâneo e procurou-se de novo as forças espirituais da Ortodoxia. Mano a mano com esse renascimento da vida espiritual ocorreu um novo entusiasmo pelo trabalho missionário. Tanto na teologia como na espiritualidade, a Ortodoxia se libertou de uma imitação eslava do ocidente.

Foi no Monte Athos que esse renascimento religioso teve origem. Um jovem russo da Academia Teológica de Kiev, Paissy Velichkovsky (1722-1794), horrorizado pelo tom secular do ensinamento fugiu para o Monte Athos e ali se tornou monge. Em 1763 foi para a Romênia e tornou-se abade do Mosteiro de Niamets, transformando num grande centro espiritual, juntando ao redor dele mais de 500 irmãos. Sob sua direção, a comunidade devotou-se especialmente ao trabalho de traduzir os textos dos padres gregos para o eslavônio. No Monte Athos Paissy tinha aprendido em primeira mão sobre a tradição hesicasta e nutrindo uma forte simpatia por seu contemporâneo Nicodemus. Ele fez uma tradução para o eslavônio da Filocalia, que foi publicada em Moscou em 1793.

Paissy punha grande ênfase sobre a prática da oração contínua acima de tudo na oração do coração e a necessidade de obediência a um ancião ou staretz. Ele foi fortemente influenciado por Nilo e os não-possessores, mas não perdeu de vista os bons elementos da forma de monasticismo dos seguidores de José: ele deu mais espaço que Nilo para as orações litúrgicas e trabalho social e desse modo tentou, como Sérgio, combinar a mística com os aspectos corporativos e sociais da vida monástica.

Paissy nunca retornou à Rússia, mas muitos dos seus discípulos viajaram da Romênia para lá e sob a sua inspiração, um renascimento monástico espalhou-se pela Rússia. Casas existentes foram revigoradas e muitas novas foram fundadas: em 1810 existiam 452 mosteiros na Rússia, enquanto que em 1914 existiam 1025. Esse movimento monástico, enquanto no seu aspecto externo estava preocupado em servir ao mundo, restaurou no centro da vida da Igreja a tradição dos não-possessores fortemente suprimida desde o século dezesseis. Ele foi marcado em particular pela prática altamente desenvolvida de orientação espiritual. Apesar de que o "Ancião" ter sido uma figura característica em muitos períodos da história Ortodoxa, o século dezenove na Rússia, foi por excelência a época dos staretz.

O primeiro e grande dos staretz do século dezenove foi São Serafim de Sarov (1759-1833) que, de todos os santos da Rússia, é talvez o mais atrativo aos Cristãos não-Ortodoxos. Tendo entrado no Mosteiro de Sarov com dezenove anos, Serafim primeiro passou dezesseis anos na vida comum da comunidade. Então se retirou para passar os seguintes vinte anos em isolamento, vivendo primeiro numa cabana na floresta, depois (quando seus pés incharam e ele não podia mais andar com facilidade) recluso numa cela no mosteiro. Esse foi seu treinamento para a função de staretz . Finalmente em 1815 ele abriu a porta de sua cela. Da aurora à noite recebia todos que vinham a ele buscar ajuda, curando os doentes, aconselhando, freqüentemente dando as respostas antes que seu visitante tivesse tempo para fazer qualquer pergunta. Muitos, mesmo centenas, iam vê-lo num único dia. O modelo externo da vida de São Serafim lembra a de Santo Antonio ou (Antão) do deserto do Egito quinze séculos antes: a mesma retirada para depois voltar. Serafim é olhado corretamente como um santo caracteristicamente russo, mas ele é ao mesmo tempo um exemplo impressionante de quanto a Ortodoxia russa tem em comum com Bizâncio e com a tradição Ortodoxa universal ao longo dos séculos.

Serafim foi extremamente severo consigo próprio (num período de sua vida ele passou mil noites sucessivas em oração contínua, permanecendo imóvel através das longas horas sobre uma rocha), mas ele era gentil com os outros, sem, no entanto ser sentimental ou indulgente. O ascetismo não o tornou melancólico e se alguma vez a vida de um santo foi iluminada com alegria, foi a vida de Serafim. Ele praticava a Oração do Coração e, como aos hesicastas bizantinos, a ele também foi dada a visão da Luz Divina, Não-Criada. No caso de Serafim, na verdade a Luz Divina tomava uma forma visível transformando seu corpo. Um dos "filhos espirituais" de Serafim, Nicolas Motovilov, descreveu o que aconteceu num dia de inverno quando eles dois estavam conversando na floresta. Serafim tinha falado sobre a necessidade de adquirir o Espírito Santo e Motovilov perguntou como alguém poderia estar seguro de "estar no Espírito de Deus":

Então pai Serafim me pegou firmemente pelos ombros e disse:

— “Meu filho, nesse momento nós estamos ambos no Espírito de Deus. Porque tu não olhas para mim?”.

"Eu não posso olhar, Pai”, respondi, "Porque seus olhos estão brilhando como faróis. Tua face se tornou mais brilhante que o sol e doem meus olhos ao olhar para ti."

— "Não tenha medo”, disse ele. "Nesse instante tu próprio te tornaste tão brilhante quanto eu. Tu mesmo estás agora na totalidade do Espírito de Deus; de outro modo tu não conseguirias me ver como estás vendo”.

Então inclinando sua cabeça para mim, ele murmurou docemente no meu ouvido:

— "Graças ao Senhor Deus por sua infinita bondade para conosco... Mas, porque meu filho, tu não olhas nos meus olhos! Olhes e não tenha medo: o Senhor está conosco”.

Depois dessas palavras eu dei uma olhada rápida em sua face e veio sobre mim um temor reverente ainda maior. Imaginem no centro do sol, em sua luz deslumbrante do meio-dia, a face de um homem falando a vós. Veríeis o movimento de seus lábios e a expressão mutável de seus olhos, ouviríeis a sua voz, sentiríeis alguém segurando vossos ombros, ainda que não vísseis mãos segurando os ombros, não veríeis sequer vossos próprios corpos, mas somente uma luz cegante espalhando-se por muitos metros e iluminando com seu brilho a cobertura de neve que cobria a floresta e os flocos de neve que continuavam a cair incessantemente...

— - "O que tu tens?" Pai Serafim me perguntou.

"Um incomensurável bem estar”, respondi.

— "Mas que tipo de bem estar? Como exatamente estas te sentindo?"

"Eu sinto tanta calma”, respondi, "tanta paz na minha alma que não existem palavras que possam expressar o que sinto."

— "Essa”, disse Pai Serafim, "é a paz da qual o Senhor falou para seus discípulos: ”A minha paz eu vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá" (Jo 14;27). A paz que excede todo entendimento (Fi, 4,7). O que mais tu sentes?"

"Infinita alegria em todo meu coração”.

E pai Serafim continuou:

— "Quando o Espírito de Deus desce sobre o homem e engolfa-o com a totalidade de sua presença, então a alma do homem flutua com alegria indescritível, pois o Espírito Santo preenche com júbilo tudo que Ele toca..." (Conversation of Saitn Serafin on the Aim of the Christian Life, Impresso em A Wonderful Revelation to the World, Jordanville, N.Y., 1953, págs.23-25)

E assim a conversa continua. A passagem inteira é de extraordinária importância para o entendimento da doutrina Ortodoxa da deificação e união com Deus. Ela mostra como a idéia Ortodoxa de santificação inclui o corpo: não é só a alma de Serafim (ou de Motovilov), mas todo o corpo que é transfigurado pela graça de Deus. Devemos notar que nem Serafim nem Motovilov estavam em estado de êxtase, ambos podiam conversar de maneira coerente e estavam ainda conscientes do mundo exterior, mas ambos estavam preenchidos com o Espírito Santo e circundados pela luz do tempo que há de vir.

Serafim não teve professor na arte da orientação espiritual e não deixou sucessor. Depois de sua morte o trabalho foi tomado por outra comunidade, o Mosteiro de Optino. De 1829 a 1923, quando o mosteiro foi fechado pelos bolcheviques, uma sucessão de startsi orientou muitos e sua influência estendeu-se como a de Serafim, sobre toda a Rússia. Os mais conhecidos dos startsi de Optino são Leonid (1768-1841), Macarius (1788-1860) e Ambrosio (1812-1891). Ao mesmo tempo que todos esses startsi pertenceram à escola de Paissy e eram todos devotados à Oração do Coração, cada um deles teve um caráter marcadamente de si próprio: Leonid, por exemplo, era simples, vivaz e direto, atraindo especialmente camponeses e mercadores, enquanto Macarius era altamente educado, um erudito em Patrística, um homem em contato estreito com os movimentos intelectuais de seu tempo, Optino influenciou muitos escritores incluindo Gogol, Khomiakov, Dostoyevsky, Solovieu e Tolstoi. (A historia de Tolstoi e sua relação com a Igreja Ortodoxa é extremamente triste. No fim de sua vida ele publicamente atacou a Igreja com grande violência e o Santo Sínodo, após algumas hesitações, o excomungou (fev. 1901). Quando ele jazia agonizante na casa do chefe de estação de Astapovo, um dos staretz de Optino viajou para vê-lo, mas teve seu acesso vetado pela família de Tolstoi). A figura marcante de Zossimo na novela de Dostoyevsky, os Irmãos Karamazov foi baseada parcialmente em pai Macárius ou Pai Ambrósio de Optino, apesar de Dostoyevsky dizer que havia se inspirado principalmente na vida de São Thinkon de Zadonsk.

"Existe uma coisa mais importante que todos os possíveis livros e idéias, " escreveu o eslavófilo Ivan Kireyevsky " que é encontrar um staretz Ortodoxo diante de quem tu podes colocar todos teus pensamentos e de quem tu podes ouvir não a tua própria opinião, mas sim o julgamento dos Santos Padres. Deus seja louvado por tais startsi, ainda não desapareceram na Rússia." (citado por Metropolita Serafim [de Berlin e Europa Ocidental], L’Eglise Orthodoxe, paris, 1952, pág. 219).

Através dos startsi, o renascimento monástico influenciou a vida do povo todo. A atmosfera espiritual desse tempo é vividamente expressa em um livro anônimo, Relatos de um Peregrino Russo, que descreve as experiências de um camponês russo que vagueia de lugar para lugar praticando a Oração do Coração. Para aqueles que não sabem nada sobre a Oração do Coração, não pode haver melhor introdução que esse pequeno livro, que mostra que a Oração do Coração não é limitada a mosteiros, mas pode ser usada por todos, em qualquer forma de vida. Enquanto viaja, o peregrino carrega consigo uma cópia da Philocalia, presumivelmente a tradução eslavônia feita por Paissy. O Bispo Teófano, o Recluso (1815 — 1894), durante os anos de 1876 a 1890, publicou uma tradução muito expandida da Philocalia em cinco volumes, não em eslavônio mas em russo.

Até aqui nós falamos principalmente do movimento centrado nos mosteiros mas entre as grandes figuras da Igreja russa, no século dezenove, existiu também um membro do clero paroquial casado, João Sergiev (1829 — 1908), usualmente conhecido como João de Kronstadt, porque durante seu ministério ele trabalhou nesse lugar, Kronstadt, uma base naval e subúrbio de Petersburgo. O padre João é mais lembrado por seu trabalho como padre paroquial, visitando os pobres e os doentes, organizando trabalhos caritativos, ensinando religião para as crianças de sua paróquia, pregando continuadamente, e acima de tudo rezando com e para seu rebanho. Ele tinha uma intensa consciência do poder da oração, e quando ele celebrava a Liturgia era inteiramente arrebatado: "Ele não conseguia manter a medida prescrita da entonação litúrgica: ele clamava por Deus; ele gritava; ele chorava em face do Gólgota e da Ressurreição que se apresentavam para ele com um atordoante imediatismo" (Fedotov, A treasury of Russian Spirituality, pág 348). O mesmo sentido de imediatismo pode ser sentido em todas as páginas da autobiografia que o padre João escreveu, My Life in Christ. Como São Serafim, ele possuía o dom da cura, de percepções e entendimento e de orientação espiritual.

Padre João insistia em comunhão freqüente, apesar de na Rússia de seu tempo era completamente não usual os leigos comungar mais do que quatro ou cinco vezes por ano. Porque ele não tinha tempo para ouvir individualmente confissões de todos que vinham para comungar, ele estabeleceu uma forma de confissão pública, como todos gritando seus pecados simultaneamente. Ele tornou a iconostase num anteparo baixo, de modo a que o altar e os celebrantes ficassem visíveis durante o Oficio. Na sua ênfase na comunhão freqüente e na sua reversão para formas mais antigas de iconostase, padre João antecipou os desenvolvimentos litúrgicos da Ortodoxia contemporânea. Em 1964 ele foi proclamado Santo pela Igreja Russa no exílio.

Na Rússia do século dezenove houve um impressionante renascimento do trabalho missionário. Desde os dias de Mitrofan de Sarai e de Estevão de Perm, os russos tinham sido ativos missionários, e quando o poder moscovita avançou para o leste, foi aberto um grande campo para a evangelização de tribos nativas e de mongóis maometanos. Mas apesar da Igreja nunca ter cessado de mandar pregadores para os pagãos, nos séculos dezessete e dezoito os esforços missionários enfraqueceram particularmente depois do fechamento dos mosteiros por Catarina. Mas no século dezenove o desafio missionário foi retomado com nova energia e entusiasmo; a Academia de Kazan, aberta em 1842, esteve especialmente preocupada com estudos missionários e o clero nativo foi treinado; as escrituras e Liturgia foram traduzidas numa grande variedade de línguas. Só na área de Kazan, a Liturgia era celebrada em vinte e duas línguas ou dialetos.

É significativo que um dos primeiros líderes do renascimento missionário, o Arquimandrita Macarius (Glukharev, 1792-1847), foi um estudante do hesicasmo e conheceu os discípulos de Paissy Velichkovsky. O renascimento missionário teve suas raízes no renascimento da vida espiritual. O maior dos missionários do século dezenove foi Inocente (João Veniaminov, 1797-1879), Bispo de Kamchatka e das Ilhas Aleutas, que foi proclamado Santo em 1977. Sua diocese era do Estreito de Bhering até o Alaska, que naquele tempo pertencia à Rússia. Inocente desempenhou um papel importante no desenvolvimento da Ortodoxia das Américas, e milhões de Ortodoxos americanos hoje, podem olhar para ele com um de seus principais "Apóstolos."

No campo da teologia, a Rússia do século dezenove rompeu com sua excessiva dependência do ocidente. Isso foi principalmente devido ao trabalho de Aléxis Khomiakov (1804-1860), líder do círculo eslavófilo e talvez o primeiro teólogo original da história da Igreja Russa. Um proprietário de terras rurais e capitão da cavalaria aposentado, Khomiakov pertenceu à tradição de teólogos leigos que sempre existiu na Ortodoxia. Khomiakov argumentava que todo o Cristianismo ocidental, Romano ou Protestante, partilhavam das mesmas assunções e revelavam os mesmo pontos de vista fundamentais, enquanto a Ortodoxia é algo inteiramente distinto. Considerando que assim seja (Khomiakov continuava), não é suficiente para a Ortodoxia tomar emprestada a teologia do Ocidente, como estivera fazendo desde o século dezessete, ao invés de usar argumentos protestantes contra Roma, e argumentos romanos contra os Protestantes, os Ortodoxos deveriam retornar para suas próprias fontes autênticas, e redescobrir a verdadeira tradição Ortodoxa, que em suas pressuposições básicas, não é nem romana e nem reformada, mas única.

Como seu amigo G. Samarin colocou, antes de Khomiakov "nossa escola Ortodoxa de teologia não estava em posição de definir nem latinismo nem protestantismo, porque separavam suas posições próprias da Ortodoxia, ela tinha se dividido em duas, e cada uma dessas metades tinha tomado uma posição verdadeiramente oposta a sua metade oponente, latina ou protestante, mas não acima dela." Foi Khomiakov quem primeiro olhou para o latinismo e para o protestantismo do ponto de vista da Igreja, conseqüentemente de uma posição mais elevada; e essa é a razão pela qual ele foi capaz de definir o latinismo e o protestantismo (citado em Birkbeck, Rússia and the English Church, pág. 14). Khomiakov estava particularmente preocupado com a doutrina da Igreja, sua unidade e autoridade; e aí ele deu uma contribuição duradoura à teologia Ortodoxa.

Khomiakov durante sua vida exerceu pouca ou nenhuma influência sobre a teologia ensinada nas academias e seminários, mas nesses locais também houve uma crescente independência da influência ocidental. Em 1900 a teologia acadêmica russa estava em seu pico, e existiram muitos teólogos, historiadores e liturgistas, inteiramente treinados em disciplinas acadêmicas ocidentais, que no entanto não permitiram que influências ocidentais distorcessem sua Ortodoxia. Nos anos seguintes a 1900 houve também um importante renascimento fora das escolas teológicas.Desde o tempo de Pedro, o Grande, a descrença tinha se tornado comum entre os "intelectuais" russos, mas nesses anos citados, um bom número de pensadores, por vários rumos, acabou encontrando seu caminho de volta à Igreja. Alguns eram ex-marxistas, como Sergio Bulgakov (1874-1944) (posteriormente ordenado presbítero) e Nicolas Berodyaev (1874-1948). Ambos subseqüentemente tiveram um papel importante na vida da imigração russa em Paris.

Quando se reflete sobre a vida de Thikon e Serafim, sobre os startsi de Potino e sobre João de Kronstadt, no trabalho missionário e teológico no século dezenove na Rússia, e que se pode ver como é injusto olhar para o período Sinodal simplesmente como um período de declínio. Um dos historiadores da Igreja Russa, professor Kartashev (1875-1960), disse com razão:

«A subjugação foi enobrecida de dentro para fora pela humildade cristã ( ... ) A Igreja Russa sofreu sob o peso do regime, mas ela superou isso de dentro. Ela cresceu, se espalhou e floresceu de muitas maneiras diferentes, Assim o período do Santo Sínodo poderia ser chamado do mais brilhante e glorioso período da história da Igreja russa.» (artigo no periódico, The Christian East, vol XVI, 1936, págs. 114 e 115).

Em 15 de agosto de 1917, seis meses depois da abdicação do Imperador Nicolas II, quando o governo provisório estava no poder, um concilio da Igreja de toda as Rússias foi reunido em Moscou, e não se dispersou até setembro do ano seguinte. Mais da metade dos delegados eram leigos — bispos e clero presentes somavam 250, os leigos 314 — mas (como o direito canônico exigia) a decisão final em questões especificadamente religiosas era reservada somente para os bispos. O Concílio analisou um amplo programa de reforma, seu ato principal tendo sido a abolição da forma Sinodal do governo implantada por Pedro, o Grande, e a restauração do Patriarcado. A eleição do Patriarca ocorreu em 5 de novembro de 1917. Em uma série de votações preliminares, três candidatos foram selecionados; mas a escolha final entre esses três foi por sorteio. Na primeira votação Antony (Khrapovitsky), Arcebispo de Kharkov, saiu em primeiro com 101 votos; depois Arsênio, Arcebispo de Novgorod, com 27 votos;e terceiro Tikhon (Beliavin), Metropolita de Moscou (1866-1925); com 23 votos. Mas quando o sorteio foi feito, foi o último desses três candidatos, Tikhon, que na realidade foi escolhido como Patriarca.

Eventos externos deram uma nota de urgência às deliberações. Nas primeiras sessões os membros podiam ouvir o som da artilharia bolshevik bombardeando o Kremlin, e dois dias antes da eleição do Patriarca, Lenin e seus associados ganharam o comando completo de Moscou. A Igreja não dispôs de tempo para consolidar o trabalho da reforma. Antes que o Concílio fosse encerrado no verão de 1918, seus membros souberam com horror do brutal assassinato de Vladimir, Metropolita de Kiev, pelos Bolsheviks. A perseguição havia começado.

Solo Deo Glória

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